Quando, no início do séc. xx, Pablo e Georges pincelaram os primeiros traços cubistas, estariam talvez longe de imaginar a amálgama de sensações que semelhante revolução traria ao mundo das artes plásticas.
Olhe-se para a obra Les Demoiselles d’Avignon e será impossível não ficar siderado com a beleza geométrica, meio caótica e desnuda, que Picasso oferece ao mundo, pintando e retratando com um traço imortal a mais imortal profissão do mundo.
Não há coincidências, não há acasos.
Do linear e realista saltou o pincel para a contorcionista beleza que obriga a viajar pela improvável perspetiva ali retratada.
O que tem isto a ver com o Falcão?
Nada.
E tudo.
Miguel Oliveira pinta suas obras de rara beleza em circuitos e pistas de asfalto realistas.
Outros há que o fazem por entre saltos na terra, troncos de árvores, pedras e poças de água, coisas e solavancos em que o inesperado é surgir algo esperado.
A régua versus a dupla do esquadro e compasso.
E é aqui que pretendo chegar, é aqui que entra o cubista Reis, de seu nome Gonçalo, o primeiro campeão mundial da Open 2S Enduro World Cup, modalidade agora criada pela FIM.
É português, é cubista, é campeão do mundo: não conheço mais ninguém que reúna estas características e, por isso, já vou achando que merece a atenção de todos nós para a carreira que vem desenhando, nada omissa em êxitos e celebrações.
Neste Mundial que acaba de vencer arrasou com nove vitórias em dez provas, e se isto, meus senhores, não é digno que saltemos do sofá e ensaiemos fortíssimo aplauso, nada mais o será então.
Se a chegada de um dos nossos ao mundo do MotoGP terá servido como despertar para uma maioria silenciosa que vai ficando cansada das guerras do futebol, então surfemos esta onda e tratemos de levar novos mundos ao mundo, como faziam os nossos navegadores do antigamente.
Gonçalo Reis é, pois, o nome.
Voa em hipérboles de terra batida, transforma em tapete de vitória uma improvável sucessão de obstáculos terrenos que parecem saídos de um parque temático de dificuldades geométricas.
Gonçalo Reis, o senhor cubista, pincela as suas pistas como Picasso, contrapondo a beleza majestosa das telas de Miguel Oliveira em seu realismo courbetiano.
Precisão quase deitado nas curvas contra precisão de sempre em pé.
Que belo é este dueto, e que outros nomes nos sentimos tentados a trazer à baila! Se ao par Picasso/Courbet fazem jus as corridas do Falcão e do Gonçalo, porque não imaginar uma fusão de ambos e perceber a genialidade do piloto português na sua essência, neste caso criando um protótipo com ambas e tão raras qualidades?
Miguel mais Gonçalo.
Eis Andy Warhol, o génio da exatidão abstrata.
O modo quase arrasador de Gonçalo, sem concessões de monta a quem se lhe ia opondo neste desafio criado pela FIM, poderá ter sido uma surpresa para muitos.
Para mim, simples aprendiz de feiticeiro, foi certamente, mas para aqueles que acompanharam uma longa caminhada que inclui nove títulos nacionais de Enduro, um título de campeão europeu, uma vitória no Troféu das Nações correndo por Portugal e uma participação no mítico Dakar, para todos eles terá sido apenas a consagração pública de quem há muito se alcandorou ao patamar dos vencedores natos.
Acrescentemos então este nome mais à lista daqueles que nos obrigam a assinalar na agenda os dias de suas provas.
Gonçalo, o cubista que juntou Falcão e Warhol no mesmo parágrafo.
Só por isso, já merece.