No ano anterior, a transmissão da fase final do campeonato do Mundo, em Inglaterra, fora de tal forma um sucesso que as cadeias de televisão norte-americanas começaram a importar o produto de forma indiscriminada. Além de que os estádios se enchiam com uma facilidade de deixar qualquer um de boca escancarada e cáries à mostra. Um Santos-Inter de Milão, por exemplo, levou ao Yankee Stadium cerca de 42 mil espetadores.
Eis que a United Soccer Association tem uma ideia tão peregrina como inédita. Para o campeonato norte-americano de 1967, nada de equipas aborrecidas, cheias de americanos que mal sabiam dar um pontapé numa bola. Como? Fácil! Uma dúzia de equipas da América do Sul e da Europa foram convidadas a ocupar os seis lugares de cada zona (Este e Oeste) sob o nome de clubes dos Estados Unidos. Bem sei, é mais do que peregrino, é bizantino. Mas fez-se!
Não deixou de haver problemas, e muitos. Primeiro porque o temperamento dos sul-americanos é, por corrente sanguínea, mais dado à fervura do que o dos continentais do norte. Logo na primeira jornada, o jogo entre os Detroit Cougars e os Houston Stars foi interrompido aos 73 minutos por cenas de pancadaria que alastraram às bancadas. Claro que os de Detroit não eram de Detroit, eram o Glentoran, da Irlanda do Norte, e os de Houston não eram de Houston, eram o Bangu, do Brasil. A polícia também não teve mãos a medir no New York Skyliners contra os Cleveland Stokers. Os Skyliners eram, de facto, o Cerro, do Uruguai, e os Stokers, como se está mesmo a ver, o Stoke City, da Inglaterra.
Esta espécie de futebol de Carnaval, com os clubes todos disfarçados, deu uma final entre os Washington Whips e os Los Angeles Wolves. Ora, os Wolves eram nada mais nada menos do que os wolves de Inglaterra, ou seja, o Wolverhampton, e os Whips eram o Aberdeen, da Escócia. Ian Thompson, que escreveu um livro sobre esse campeonato, chamado Summer of 67, não teve medo das palavras: “A mais extraordinária final de futebol que jamais aconteceu em solo americano!” Pudera! Vejam bem: um hat-trick para cada lado, um cartão vermelho, um penálti defendido, um penálti convertido e um autogolo que decidiu o vencedor a seis minutos do segundo prolongamento através de morte súbita. Os americanos só podiam mesmo delirar.
Loucura! Bobby Clark, guarda-redes do Aberdeen (isto é, dos Washington Whips), tinha apenas 21 anos. “Foi uma aventura um bocado louca. Depois do nosso fim de época na Europa, fomos jogar outro campeonato inteiro. Nunca tinha ido aos Estados Unidos e voei por toda a parte: para São Francisco, jogar contra o Golden Gate Wales, que era o ADO den Haag, da Holanda; para Houston, defrontar a equipa da casa, os brasileiros do Bangu; para Toronto, enfrentar o Toronto City que, afinal, era o Hibernian. Era fantástico olhar para uma bancada e ver que Elvis Presley estava lá. Aproveitei para comprar a minha coleção de LP’s”.
No dia da final, que teve lugar em Los Angeles, um jornal berrava em manchete: “Soccer’s Super Match! The game of games in true World Cup class for the North American Championship! See your exciting Los Angeles Wolves – a team that has captured the heart of Los Angeles sports fans – battle for the championship of the United Soccer Association. Don’t miss this memorable major league match!”
As frases tonitruantes não desmereceram.
O jogo seria um espetáculo inesquecível para os que tiveram a sorte do o ver ao vivo.
Bem cedo, Peter Knowles (Wolves) e Jimmy Smith (Whips) deram o mote. Mas iria ser preciso mais um pouco para que o vulcão finalmente entrasse em erupção. Quatro minutos eletrizantes: David Burnside marcou dois golos para os Wolves, anulando os que tinham sido apontados nos dois minutos anteriores por Frank Munro e Jim Storrie.
Cerca de 50 mil gargantas enrouqueciam nas bancadas. Uma velhinha quase morreu de ataque cardíaco quando Jim Smith do Aberdeen (aliás, dos Whips) foi expulso aos 80 minutos. Como a velhinha se aguentou firme depois de cheirar uns sais, tratou de insultar o juiz de tudo o que sabia, e era muito.
David Burnside deu vantagem aos Wolves, mas Munro devolveu o empate.
Quatro a quatro no final.
Um povão histérico enrolava-se à volta do relvado, ansioso, inquieto, fumando como chaminés.
Os 29 minutos do prolongamento deixaram tudo na mesma. Derek Dougan fez 5-4 para o Aberdeen; Terry Wharton teve um penálti nos pés pouco minutos mais tarde, e os Whips pareciam condenados.
Qual quê? Bobby Clark defendeu o penálti e voltou a deixar o estádio num caos completo. No último minuto do prolongamento, Munro empatou.
Decidiu-se então que o novo prolongamento chegaria ao fim com o golo de uma das equipas, que seria considerada campeã. O New York Times referiu com cavalheirismo que foi um golo acidental. Afinal, a bola chutada por Bobby Thompson embatera nas pernas de um defesa e enganara o jovem keeper. Jack Kent Cooke, proprietário do Wolves, mas não do Wolverhampton, afastava com um lenço o sol da testa: “There isn’t a writer in Hollywood, there never has been one, who could have written a script for the game tonight”.
Provavelmente, tem razão. Dificilmente se verá um campeonato assim travestido.
O dia 14 de julho de 1967 ficará para sempre para a história do futebol norte-americano. No Memorial Coliseum Stadium, ingleses e escoceses bateram-se galhardamente num campeonato que não tardaria a atrair grandes figuras do futebol, como Pelé, Eusébio, Beckenbauer e tantos outros.
O Wolverhampton voltou para a Grã-Bretanha com mais 3 mil libras no bolso. E uma certa saudade na alma.