Ao contrário do que possa parecer, este não é um texto sobre motas.
Mas, dito isto, queria fazer uma pequena introdução que pode guiar o leitor noutro sentido. É que terminou no passado domingo o encontro europeu H.O.G (Harley Owners Group) em Cascais. Trinta mil Harley-Davidson, de 32 países, passaram (pelo menos) três dias no concelho, que teve lotação esgotada na hotelaria e nos serviços. Estimativas rápidas, e bastante conservadoras, apontam para um retorno direto de muitos milhões de euros e que extravasou as fronteiras da economia local. Como muitos leitores terão notado, pela dimensão viral que algumas imagens tiveram nas redes sociais e pela cobertura pelos meios de comunicação social, a popular concentração de proprietários de Harley-Davidson é um acontecimento que ultrapassa, e muito, as fronteiras do nosso país.
Isso não é evidente à primeira vista. Mas acontece sobretudo por três razões.
A primeira é o poder da marca. Apesar de muito globalizada nas suas vertentes de produção e consumo, a Harley-Davidson é um dos mais duradoiros ícones industriais dos EUA. Com uma história construída em cima de marcos identitários fortes – a fundação em 1903, a participação na i Guerra Mundial, a sobrevivência à Grande Depressão, o estrelato cinematográfico, o quase fim de linha com a concorrência japonesa, o turnaround para um tempo de grande crescimento e as colisões com o Presidente Trump –, é seguro dizer que não há muitas marcas que corporizem tão bem o American spirit.
A segunda é o poder do cliente Harley. Em tempos associados aos foras-da-lei (Marlon Brando em The Wild One), o cliente tipo da Harley do séc. xxi está longe deste estereótipo. Situa-se acima dos 50 anos, tem uma vida profissional segura e poder de compra que o leva a investir valores até 50 mil dólares numa mota – já para não falar no dispendioso ritual de customização.
A terceira tem a ver com os locais que a Harley escolhe para celebrar os seus encontros anuais de clientes: tradicionalmente, cidades de elevado perfil e capazes de reforçar o apelo da marca. Roma, Praga, Barcelona são cidades por onde o evento já passou. Cascais recebeu o encontro HOG em 2012 e repetiu a organização em 2019, o que é muito raro.
Volto agora ao início porque este não é mesmo um texto sobre motas. E também não é um texto sobre Cascais. Mas é, sim, um texto sobre (1) a importância de compreendermos o que fazemos realmente bem; (2) de como essa excelência nacional pode ser diferenciadora no posicionamento internacional do país; (3) de como as associações marcas-territórios são potenciadores de crescimento das cidades portuguesas, precisamente porque amplificam as especificidades portuguesas à escala global.
Nós, os portugueses, continuamos a ter uma inexplicável capacidade para desvalorizar o que fazemos bem. Garantimos que o copo está meio vazio mesmo quando ele está completamente cheio. Podia dar-se o caso de esse ceticismo ser uma medida de ambição. Mas não é. A maioria das vezes é mesmo só incapacidade de se ser feliz e a procura de conforto na maledicência. É sempre mais fácil destruir do que construir.
Longe vai o tempo em que organizar grandes eventos internacionais no nosso país era problemático. Com enorme experiência adquirida ao longo dos últimos 25 anos, as cidades portuguesas e o país são conhecidos pela sua excelência organizacional. É claro que continuamos a ser os mestres do desenrascanço. Em cima dos princípios do bom planeamento, isso é uma fonte de valor que ninguém consegue replicar.
Qualquer parceiro ou investidor que escolha o país para realizar os seus eventos destacará isto mesmo. E, para além dos nossos patrimónios materiais, o que acaba por fazer mesmo a diferença é a identidade genuína dos portugueses, a bondade dos costumes, o seu espírito tolerante e predisposição natural para aceitar e conhecer a diferença.
Este conjunto de valores marca uma diferença no mundo pela qual Portugal e os portugueses são hoje conhecidos. As praias, as paisagens naturais, a história, a qualidade de vida… tudo isso importa na afirmação da competitividade do país. Mas cada vez mais me convenço de que a chave do sucesso, tanto externo como interno, se deve ao fator humano. São as pessoas as maiores responsáveis pela atratividade crescente do nosso país. Que as grandes marcas sirvam de prescritoras do nosso modo de ser e de estar só pode ser considerado um ganho assinalável.
Em Portugal, e ao contrário do que acontece noutras latitudes, um projeto de investimento nunca se esgota na sua dimensão económica. Cá, ele ganha lastro social, relacional e até sentimental. Empresas que entram para competir acabam a fazer parcerias. Marcas que procuram clientes acabam por fazer amigos.
Há uma dimensão cultural superlativa no nosso país que não é replicável por nenhum outro. E, assim saibamos cuidar dela, essa é uma mola poderosa na afirmação internacional do país.
Exemplos de eventos como aquele que trouxe a este texto mostram o melhor de Portugal ao mundo. Não falta quem, tocado pelo nosso país, queira fazer parte do nosso projeto de comunidade. Há quem volte para nos visitar. Há quem volte para comprar casa. Há quem volte para viver e não mais sair. E há mesmo quem volte para investir e criar cadeias de valor que geram riqueza e emprego.
Assim se constrói um país mais rico e diverso, mais tolerante e próspero.
Escreve à quarta-feira