Não é pelo Miguel


Morreram milhares de pessoas no Mediterrâneo nos últimos anos, outras foram salvas. A história do português de 26 anos que, junto com outros voluntários de uma ONG alemã, é acusado de auxílio à imigração ilegal por operações de resgate de migrantes em águas italianas volta a gerar entre nós uma onda de solidariedade num flagelo…


Em 2015, o corpo de um menino de três anos numa praia da Turquia tornou-se a imagem do desespero e da impotência. Alan Kurdi não sobreviveu à travessia do Mediterrâneo, nem ele, nem o irmão de cinco anos, nem a mãe. Não seria possível ter chegado mais cedo? Morreram milhares de pessoas no Mediterrâneo nos últimos anos, outras foram salvas. A história do português de 26 anos que, junto com outros voluntários de uma ONG alemã, é acusado de auxílio à imigração ilegal por operações de resgate de migrantes em águas italianas volta a gerar entre nós uma onda de solidariedade num flagelo tão próximo mas tantas vezes longe das preocupações do dia-a-dia. Miguel Duarte conta que não quis ficar parado e foi ajudar como lhe pareceu certo, resgatando mais de 5 mil pessoas em perigo no mar. Diz que 99% das operações a bordo do navio Iuventa eram feitas com conhecimento das autoridades italianas. Numa semana e meia, o crowdfunding que lançaram para preparar a defesa na justiça juntou mais de 35 mil euros e tornou a pôr as políticas de imigração europeias no debate político nacional. Diz bem Miguel que é dinheiro que estaria mais bem empregue na solução do problema e em missões de resgate do que num processo absurdo. E um processo que, perseguindo ações humanitárias, não acabará com as redes de tráfico humano e com a ganância de quem faz negócio com a miséria dos outros e encontra sempre caminhos para a exploração. Nos últimos dias, o Governo italiano apertou o cerco, com um decreto que ameaça com multas até 50 mil euros barcos que insistam em atuar nas águas do país, o que já levou as Nações Unidas a apelarem a Salvini para que reconsidere. “É como multar ambulâncias que levam doentes para os hospitais”, disse Claudia Lodesani, dos Médicos Sem Fronteiras em Itália. “A realidade é que, com cada vez menos embarcações humanitárias no mar, as pessoas com poucas alternativas vão continuar a fazer essa travessia mortal, independentemente dos riscos. A única diferença agora é que têm quase quatro vezes mais hipóteses de morrer do que no ano passado”, apelou Frédéric Penard, da SOS Mediterranée. “As pessoas que salvam da morte dezenas de pessoas devem ser respeitadas por isso, mesmo que involuntariamente estejam a ser, na prática, cúmplices de imigração ilegal. É preciso ter noção suficiente das coisas”, disse Augusto Santos Silva. Mais do que palavras de apoio a Miguel, é preciso firmeza na Europa por parte de quem não aceita que se cave ainda mais a miséria de quem tem menos.