Na última semana fui sobressaltado por notícias e iniciativas contraditórias que me provocaram reflexões e sensações distintas, mas todas fortes e impressivas.
1. Na morte de Ruben de Carvalho – cuja inteligência, cultura e coerência serena de quem não tinha medo de ter convicções e assumi-las havia aqui, faz tempo, ressaltado – confrontei-me com a leitura de inúmeras manifestações de apreço por ele que tinham, mesmo que inadvertidamente, implícitos os mesmos preconceitos primários de sempre sobre o partido a que pertencia e os seus militantes.
É pena que tais comentários, vindos sobretudo do jornalismo atual, não se tenham também interrogado como era possível que um tal homem – a quem reconheciam genuinamente tantas qualidades – pudesse encarnar um tal ideal e partilhá-lo vibrantemente com tantos outros.
Talvez que tal reflexão pudesse ter ajudado alguns a varrer as teias de aranha que lhes tolhem as cabeças formatadas por doses massivas e continuadas de preconceitos sobre os ideais e empenhamento de Ruben de Carvalho e dos seus camaradas.
2. Por várias vezes e de maneira prudente, analisei antes, criticamente, neste jornal, algumas das circunstâncias e das metodologias jurídicas que são hoje usadas pelo sistema judicial brasileiro para lidar com a corrupção.
Prevenir e confrontar a corrupção, através da aplicação igual da lei a todos os cidadãos e de acordo com os princípios e garantias que devem reger a atividade judicial de países democráticos, não deve merecer qualquer dúvida a quem se empenhe na construção de uma sociedade mais justa e livre.
A questão está, pois, precisamente aí: o enfrentamento da corrupção, como de resto de qualquer tipo de criminalidade, não deve permitir erodir os princípios que hão de reger os sistemas judiciais democráticos, sob pena de, por essa via, se contribuir também para a desmoralização da democracia e a subversão das regras básicas do Estado de direito.
Se não bastassem já as dúvidas sobre a congruência de um sistema em que um mesmo juiz parece poder desempenhar, em momentos diferentes mas relativamente ao mesmo caso, funções de instrução e julgamento e sobre algumas técnicas de investigação processualmente pouco controláveis, acrescem agora as que, em concreto, resultam da aparente – mas espantosamente assumida – indiferenciação de propósitos entre as funções da investigação, a cargo do Ministério Público (MP), e as de juiz.
3. Por fim, não deixa de surpreender, face aos costumes políticos nacionais, a situação que ocorre no processo de revisão do estatuto do nosso MP.
Como compreender, a essa luz, a apresentação de propostas de alteração expressivas à proposta do Governo – que recolhe e reproduz um consenso alargado no meio judicial e institucional nacional e europeu – por parte do próprio partido que é a sua base política de sustentação?
A proposta do Governo, reformadora mas equilibrada, e representando a linha de evolução que se expressa na Europa – não me refiro, claro, ao que se passa em certos países do leste europeu ou na Turquia –, procura modernizar o MP na sua vertente organizacional e manter as caraterísticas de autonomia e paralelismo hoje exigidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia às autoridades judiciárias – juízes e procuradores, no mesmo plano –, que têm de agir nos processos criminais com total independência.
Para além da mensagem e do significado político que obviamente descobrem, quais, pois, os objetivos e alvos reais das propostas de alteração ao texto governamental, que arriscam criar mais problemas institucionais do que resolvê-los?
Escreve à terça-feira