Olhai o grande editor. Tem o olho carregado de cálculo mercantil. Vive entre certames e feiras internacionais do livro, mesas-redondas, lançamentos e cerimónias de entrega de prémios. Não diz que não ao turismo literato, mas não embarca na “conversa” do valor literário. Na sua marcha pelo terreno, não põe o pé em ramo verde, raramente escorrega com uma edição desprovida de potencial comercial. Anda sempre em bolandas, como todo o homem de negócios. Quando não se ocupa do calendário das edições previstas, ou não está a falar para o departamento de marketing, encontramo-lo de roda de uma pilha de manuscritos, à cata de uma nova promessa da literatura, uma novíssima voz que vale muito a pena acompanhar. E lá a encontra, com aquela regularidade de engrossar catálogos. Nova fatalidade editorial, novo lançamento. Raramente se dispõe a gastar cera com defuntos portugueses, mesmo quando esses defuntos são para lá de bons. E com as boas justificações que prefere não confessar: a impossibilidade de eles comparecerem em mesas–redondas e lançamentos e o seu natural alheamento das glorietas literárias. Na sua obsessão pela novidade, pode dar até a ideia que o grande editor, de um modo geral pouco sensível à memória literária, quer limpar a nossa cabeça de todo o sarro histórico.
Ser um grande editor tem um preço e estamos já a pagá-lo alto. Ser um pequeno editor não é barato e exige, muitas vezes, aquela calma com que caíam aves a Sá de Miranda. Que o diga Vladimiro Nunes, o editor da Ponto de Fuga. Na cuidada edição da Obra Reunida do defuntíssimo Manuel de Lima (1915-1976) terá investido este pequeno editor, além de uns cobres que poderão demorar algum tempo a retornar, uma avultada soma de energia. Por parcelas: um aturado trabalho de investigação, que passou a pente fino o espólio de Natália Correia, a escrita de uma extensa e gostosa introdução que inclui generosíssimos nacos de várias cartas de Luiz Pacheco, que o admirou, lhe editou alguns livros, que soube dele em carne e osso e dele deu desassombrado testemunho. Escreve numa dessas cartas o editor da Contraponto: “A sua charla é toda ela um portentoso espetáculo, variado, risado, com mímicas, tiques que nem de repetidos aborrecem, por exemplo: a boquinha fechada em cu de galinha, surpresa, reprovação; uns Oh! quase assobiados, uns meneios de cabeça e todo o seu corpo vibra numa técnica de sedução ou maldadezinhas […]”. A introdução é, a vários títulos, uma peça admirável, uma força dinamizadora da própria obra de Manuel de Lima. Não lhe falta sequer a perícia de movimentos usada por Malaquias, a insólita personagem do surrealista, quando resolve abrir ao meio o seu próprio crânio. Malaquias é bem o exemplo de que as ideias, para Manuel de Lima, terão sido sempre moeda corrente, de receber e gastar, de criar e destruir. Tudo somado, é a exumação de uma figura, com os seus véus, as suas escoriações, o seu corpus ficcional erguido sobre pilares que não cessam de bascular. Um mundo fora da órbita.
Muito embora Manuel de Lima tenha integrado o grupo do Café Gelo, gostava de correr em pista solitária. E cultivava em relação à vida íntima um silêncio quase sepulcral. Uma existência rodeada de névoas de mistério, se não mesmo de opacidades que agora, pelos bons ofícios de Vladimiro Nunes, se diluem, justificará os casos e anedotas que dele se contam, a darem-nos a textura áspera do tempo que viveu. E o rol de adjetivos de que precisou quem tentou abeirar-se do seu retrato. Os desenhos de José Rodrigues que pontuam este volume de grossa lombada (quase 600 páginas) mostram-nos um “careca evidente” (assim o chamou Luiz Pacheco), sem rosto; está de boina, mas a sensação é a de que anda a apanhar bonés. Eis uma expressão que bem poderia resumir boa parte da vida atribulada do autor.
Não tendo sido Manuel de Lima aquilo a que chamaríamos hoje um fiasco editorial, os seus livros também não foram um sucesso de vendas. O que não surpreende: quando, em 1945, o programa neorrealista estava ainda na ordem do dia, já Lima tinha publicado os contos de Um Homem de Barbas (1944), prefaciados por Almada Negreiros e chutados pelo crítico João Gaspar Simões. Sobressaía neste livro de estreia uma clara “impossibilidade realista”: estranhos triângulos amorosos, animais que filosofam, submersos em complexidades vedadas ao comum raciocínio humano.
Ficcionista notável, Manuel de Lima soube arrebatar-nos à carcaça terrena e ao real concreto, transformado sem entraves pela sua livre imaginação, para nos introduzir num universo onde reina o absurdo, em doses variáveis, o intrigante e o insólito graduado em valores de tragédia. O humor, esse, surge tingido de refinado negro. É muito habitado o seu universo ficcional. Por lá se encontra (e se perde) todo o tipo de gente. Uns parecem reunidos em conciliábulo e dão–nos o conforto da familiaridade: advogados célebres, políticos de prestígio, “capitalistas que já tinham atingido a zona abstrata dos valores”; outros desafiam as leis da física, as harmonias da biologia, amam-se, odeiam-se de morte, devoram-se, impõem-nos a contabilidade dos seus ridículos e misérias. Tragédia e comédia disputam-lhes o destino. Põem-nos espelho à cara.
Real foi a sua atividade profissional. Violinista durante quase toda a sua vida – vivida em Lisboa e, fugazmente, em Caracas –, sonhava com a orquestra sem maestro. A figura do maestro terá sido o seu ódio mais visível, logo seguido do neorrealismo. E permanente, não fosse ele um contestatário próximo do movimento anarquista, sempre pronto a escovar a literatura a contrapelo. Integrou várias orquestras sinfónicas. Tocou violino na Emissora Nacional, em fossos de orquestra, em paquetes coloniais, no São Carlos e no Villaret, até ao dia em que pôs o instrumento musical no prego e jogou fora o recibo. A música, porém, irrompe na sua prosa em compactos cénicos e com aquela dissonância que só os grandes executantes alcançam.
Os artigos literários mas sobretudo de crítica musical que assinou com regularidade em periódicos como O Século ou o Diário Popular não deixam mal parados os créditos do dramaturgo que Manuel de Lima também foi, com duas abordagens tangentes à prática de Breton: a peça Sucubina ou a Teoria do Chapéu, um divertimento surrealizante habitado por humaníssimos demónios, escrita em 1952 em colaboração com a sua amiga e ocasional amante Natália Correia, que assim principia a sua experiência como dramaturga, e O Clube dos Antropófagos, fábula extraída da novela homónima (1965), uma crudelíssima sátira do imperialismo que mantém uma atualidade assustadora.
A sua obra de ficção narrativa compreende apenas quatro títulos: Um Homem de Barbas, Malaquias ou a História de um Homem Barbaramente Agredido (1953, transposto para o palco em 1993, numa adaptação de José Carretas), O Clube dos Antropófagos e A Pata do Pássaro Desenhou Uma Nova Paisagem (1972). Tanto lhe bastou para inscrever o seu nome na história da ficção.
A publicação da Obra Reunida é um verdadeiro acontecimento editorial. Não reeditado há mais de 40 anos, Manuel de Lima estava mesmo à beirinha de se converter num sólido candidato a fantasma, tornando-se as suas raras reaparições mais e mais espaçadas. Quando um livro assim nos vem à mão, apetece perguntar se atrás de um grande livro não estará quase sempre um pequeno editor.