O fogo passou. A seguir veio o silêncio. A voz faltou, as palavras fugiram e as lágrimas teimam em não secar – dizem que é assim que se começa o luto. O tempo encarrega-se de levar muitas memórias mas, em Pedrógão Grande, elas não querem ser apagadas. Dois anos depois do incêndio, juntou-se outro sentimento: a ganância. Este não é suave, não toca nos corações. Fere as almas e as línguas de quem cá vive.
Em Salaborda Velha, concelho de Pedrógão Grande, é dia de festa. À porta do único café da aldeia, António está em cima de um escadote a pendurar as luzes para a sardinhada do fim de semana. A garantir que o homem não cai está um jovem que perdeu metade da vida – os pais e a casa. Não há ninguém ali que não tenha uma história para contar, mas a revolta é grande quando se fala na reconstrução das casas. “Nunca ninguém vai esquecer o que se passou, nunca, mas há coisas que também não se esquecem: é a ganância de algumas pessoas”.
Das quase 500 casas que ficaram destruídas – entre primeira e segunda habitação –, arderam cerca de 20 em Salaborda Velha e muitas pessoas morreram carbonizadas nas ruas. Do café dá para ver uma das casas que foram reconstruídas. No dia 17 de junho de 2017, “a cega”, como todos lhe chamavam na aldeia, não quis sair de casa, apesar dos muitos avisos. A casa ardeu e a senhora foi encontrada carbonizada no interior. Vivia sozinha e não tinha filhos, mas a casa foi uma das primeiras a serem reconstruídas, com o apoio do Fundo Revita. “Mas para quem?”, pergunta quem conta ao i as histórias das injustiças. “Nunca apareceu cá ninguém para saber se a mulher precisava de um copo de água, nada, nunca”.
A casa foi totalmente destruída pelas chamas e reconstruída posteriormente. Agora “apareceu uma irmã que é herdeira e que vai ficar com uma casa nova”. Aliás, algumas casas que foram reconstruídas no concelho de Pedrógão Grande estão à venda. Hoje, a chave da casa da senhora que morreu sozinha, queimada, vai ser entregue à irmã pelas mãos de Marcelo Rebelo de Sousa. Alguns habitantes, como é o caso de Pedro Ventura, admitem que gostavam de “perguntar ao Presidente da República se sabe do que realmente se passa”.
Mas há um caso que chama mais a atenção. A uns metros da casa que foi reconstruída depois de a única habitante ter morrido, e com vista para a paisagem que agora já se enche de verde, está também uma habitação que ganhou uma nova vida – mas que, na verdade, nunca a chegou a perder. Depois do incêndio, “a preocupação inicial foi derrubar tudo, arrasar tudo completamente, para não se conseguir ver o que estava”.
O fogo destruiu um alpendre ao lado da casa, não a casa. Além disso, essa casa, propriedade de um antigo funcionário da repartição de Finanças de Castanheira de Pera, não era habitada. “O que efetivamente ardeu foi um barracão ao lado e depois foi tudo feito para dizerem que ardeu aquilo que não tinha ardido e construíram uma casa muito maior do que a anterior”, diz um homem enquanto mostra a casa do antigo chefe das Finanças. Hoje, também a chave desta casa será entregue por Marcelo Rebelo de Sousa.
“Se falarem com pessoas que foram beneficiadas, está tudo bem”, dizem. Mas há quem ainda passe por dificuldades. O rapaz que perdeu os pais e a casa não recebeu logo ajuda. Quem nos conta as histórias de Salaborda Velha diz que ele “sobreviveu não se sabe como: meteu-se entre duas casas, numa passagem estreitinha, e viu o fogo a passar”. “Mas ninguém lhe dá a mão, ele não sabia o que fazer para pedir ajuda e nós aqui é que o ajudámos e a casa já foi reconstruída”. Os habitantes garantem que ele é dos poucos que moram efetivamente nas casas e foram ajudados, apesar de terem sempre barreiras.
Na zona de Pedrógão já foram concluídas, até hoje, 90% das casas afetadas pelas chamas. Mas os números, segundo dizem, não contam as histórias verdadeiras. Casas de quem vive longe foram reconstruídas; casas de quem vive lá ainda esperam por ajuda para se reerguerem novamente.
A poucos quilómetros de Salaborda Velha está a aldeia de Pobrais. No ano passado havia uma casa já a ser reconstruída. Hoje há paredes cor-de-rosa, mas nada no interior. Aquela obra foi embargada e a dona da casa foi constituída arguida no processo das irregularidades na construção das casas de Pedrógão Grande, aberto pelo Ministério Público. Não quer ser identificada – como grande parte das pessoas –, mas conta que comprou a casa há 35 anos e viveu lá com o marido e os dois filhos. Apesar de aquela ser a sua casa, passava a maior parte do tempo no número ao lado, a tomar conta dos pais. É onde está agora, porque ficou sem nada. “A minha filha não tem um único livro da escola nem da faculdade, fiquei sem nada, até sem as recordações”, disse. Agora espera pela decisão do Ministério Público para saber o que vai acontecer – ou a obra avança, ou terá de pagar por aquilo que já foi feito.
A par da reconstrução das casas há também o mundo dos donativos que, afinal de contas, foi um dos grandes temas mais falados no último ano. Onde estão, a quem foram atribuídos – são questões que todos colocam. Em Pedrógão Grande há quem admita que o dinheiro foi mal distribuído. A ganância não se centrou apenas nas casas, estendeu-se ao dinheiro e até aos donativos em forma de bens alimentares. “Pessoas com reais necessidades tinham vergonha de ir pedir ajuda e pessoas com vidas boas vinham buscar tudo o que havia. Havia gente a ir buscar donativos ao concelho de Castanheira, ao concelho de Figueiró e ao concelho de Pedrógão, indevidamente, e gente que recebeu cheques de donativos porque eram residentes na Castanheira e foram buscá-los a Pedrógão também, em cerimónias com pompa e circunstância”, dizem.
Fogo na voz
As marcas estão lá, na voz. O marido de Odete António quase não consegue falar. Por causa do fumo que respirou no dia 17 de junho teve de ser submetido a uma operação às cordas vocais. Mesmo assim, as palavras saem cada vez menos nítidas.
Odete e o marido voltaram de vez para Várzeas, a aldeia onde morreram 14 pessoas. Entre as vítimas estão as netas e a nora de Odete – morreram as três na Estrada Nacional 236-1. Não há dia nenhum que não se lembre delas. “As minhas meninas”, diz. O inchaço na cara denota que esteve a chorar muito e há pouco tempo. “Ainda há pouco estava ali deitada e estava a ouvi-las. Mas é só um sonho”.
Os minutos são quase todos dedicados a lembrar e relembrar as duas meninas, de 12 e 15 anos. Talvez sejam as recordações que dão força ao casal para fazer as malas, sair de Lisboa e voltar de vez para Várzeas – estar ali é estar mais perto delas.
Para trás
As terras não são as mesmas e nada é igual ao que era – nem há dois nem há um ano. Nos Pobrais, todos os dias se fala no mesmo assunto. No ano passado, o i fotografou José Esteves junto à sua casa. Posou sozinho para a fotografia. A mulher foi apanhada pelas chamas em 2017, na Estrada Nacional 236-1, onde morreram mais de 30 pessoas e onde ficaram dez das 11 pessoas da aldeia de Pobrais que perderam a vida. Este ano, já não foi possível encontrar José. Foi viver para o Porto e ninguém sabe se volta.
A cinco quilómetros, em Nodeirinho – uma aldeia que também não conseguiu escapar ao fogo naquele dia –, as histórias multiplicam-se e cada canto ganhou um novo significado depois do dia 17 de junho de 2017. Mas o silêncio fala mais alto. A casa de Sebastião Esteves era das poucas que já estava terminada no ano passado, quando se marcou um ano depois dos incêndios. Na altura explicou que do lado da Câmara Municipal de Pedrógão Grande lhe disseram que, por viver sozinho, só tinha direito a um quarto. Além disso, Sebastião não tem filhos. Hoje, a casa tem as persianas para baixo e a porta trancada, e as silvas no lugar onde um dia esteve o carro do antigo taxista denunciam o abandono. Sebastião Esteves, agora com 85 anos, já não vive ali, está no lar. Os vizinhos dizem que pouco tempo depois de estar na casa nova, teve de ser levado para o lar. Talvez não se tenha habituado e “a idade já não perdoa”, dizem.
Na aldeia de Várzeas, onde o manto negro se estendeu com mais força, também houve quem deixasse a sua casa para trás. Depois do incêndio, a irmã de Odete não regressou mais a casa. As chamas destruíram parcialmente o telhado, o suficiente para deixar passar a água no inverno e um excelente convite para os ratos. Nunca conseguiu dinheiro de qualquer fundo para arranjar o telhado. A câmara diz que não tem direito. Esteve no hospital, nos cuidados continuados, e depois acabou por ser transferida para o lar. Odete conta que no ano passado trouxe a irmã a casa. “Passou o dia todo a arrumar coisas e a ver tudo o que tinha”, diz. Este ano já fez o pedido, mas ainda não regressou.
Hoje é dia de fazer o mesmo que fez a irmã de Odete. É tempo de voltar a essa casa chamada memória e recordar o dia que nunca será arrancado dos corações de quem ali vive, sem confundir ganância com direito.