É uma evidência que as direitas portuguesas representadas no Parlamento, PPD-PSD e CDS-PP, estão realmente em crise. Crise política, sem dúvida (os resultados eleitorais são desastrosos), mas, sobretudo, crise ideológica e cultural. O problema não é, como crê Marcelo PR, o da inviabilidade dum regresso próximo ao poder. O problema é mais profundo, porque estamos perante duas direitas que não reflectem nem se pensam a si próprias, contaminadas como estão pelo imediatismo e oportunismo das pequenas lutas de reconquista do poder e confortadas por uma tropa de conselheiros, colunistas e comentadores – entre eles, renegados e vira-casacas oriundos da extrema-esquerda – que tomaram literalmente conta dos órgãos de comunicação social.
Ora, os renegados e os vira-casacas que se encostaram a essas direitas parlamentares belicosas e gabarolas não têm pensamento próprio; tomam-no de empréstimo, mas simplificam-no e distorcem- -no à medida das palas que nunca deixaram de usar, mesmo depois de abdicarem da militância em partidos e movimentos quase todos de extrema-esquerda – desde o PCP à UDP, passando pelo MRPP e pela miríade de grupúsculos e dissidências marxistas-leninistas, estalinistas, maoistas e trotskistas.
A gesticulação patética de políticos de direita como Rui Rio e Paulo Rangel, Assunção Cristas e Nuno Melo, e daqueles que os apoiam, é deveras confrangedora. Releva dum vazio ideológico e cultural – e não apenas político – que nenhum deles parece capaz de preencher nos tempos mais próximos nem nunca, acho eu. A indigência das ideias e a redundância dos escritos dos vários escribas e comentadores apostados em promover as direitas – nos jornais, rádios e canais de TV – já deviam ter accionado os alarmes nos bestuntos dos políticos que desejam continuar a chefiá-las e, claro, dos que aspiram a substituí-los em breve. Acossados e desesperados, os oportunistas sugerem sempre a fuga em frente e as direitas acabam por afogar-se nas urnas de voto.
Não perceberam que já não tem pés para andar o argumento tão estafado, quer em prosas charlatãs nos jornais quer em gesticulações burlescas na TV, segundo o qual o país está hoje uma desgraça, mergulhado na anarquia e na desordem – em contraste com a ordem, a quietude, a austeridade e a resignação edénicas que empobreceram Portugal durante o período em que foi abalroado pela troika e pelas direitas de Passos Coelho e Paulo Portas coligadas no poder. Que Rui Rio e Assunção Cristas teimem em voltar à vaca fria e se deixem levar pelo storytelling que os oportunistas debitam nos jornais e televisões – e vão ver o trambolhão que apanham. Não me espantará ouvi-los, daqui a alguns meses, a exclamar, esbaforidos: “Estamos fritos!”
Em Portugal são poucos os políticos no activo – haverá alguns? – com um pensamento de direita coerente, estruturado e substantivo. Não me espanta ouvir palrar os actuais chefes do PPD-PSD e do CDS-PP e perceber que tanto eles como os rivais internos não estudam nem reflectem política, ideológica e culturalmente. Odeiam as esquerdas e é quanto lhes basta! Não percebem que, sem bases sólidas e ideias claras, é impossível dinamizar um partido e tornar credível qualquer política. As gritarias de Paulo Rangel e Nuno Melo, tal como as irritações de Rui Rio e Assunção Cristas, não passam de arrufos e despeitos politicamente fátuos, frívolos, fúteis, inanes e inúteis!
Parece-me óbvio que, enquanto o PSD não tiver a coragem de voltar a ser apenas PPD (Partido Popular Democrático), numa espécie de revolução copernicana – como a que fez António Costa no PS ao aliar-se à sua esquerda para viabilizar o actual Governo –, e enquanto o CDS não se livrar da ilusão centrista inscrita na sua sigla para passar a ser apenas PP (Partido Popular), como desejava Paulo Portas (antes de empurrar Manuel Monteiro para fora do “poleiro” do partido, onde antes o colocara) –, os dois partidos vão persistir nos mesmos equívocos ideológicos e políticos, que até podem servir para voltarem ao poder mas que, no fundo, não renovarão coisa nenhuma.
Claro que haverá sempre a alternativa demagógica e populista, fanfarrona e arrivista, que porventura ainda não terá morrido pela boca dos “peixões”, Paulo Rangel e Nuno Melo, que mergulharam as direitas em derrotas humilhantes nas eleições europeias de Maio. No entanto, não me parece que qualquer dos partidos seja capaz de “parir” demagogos superlativos e populistas fenomenais, depois das tentativas frustrantes e patéticas de Santana Lopes e de André Ventura – ambos saídos directamente do PPD–PSD e desse mundo inóspito e sanguinolento do pontapé na bola. O eleitorado fiel é capaz de ficar irritado e proclamar que, para “flopes”, já “basta” assim!
Torna-se irresistível citar um pensador genuinamente de direita, Jaime Nogueira Pinto, que reflectiu com seriedade e inteligência sobre A Direita e as Direitas (Difel, 1996), ao escrever: “A direita, ou aquilo que, historicamente, assim se pode definir, cometeu, em Portugal, erros grosseiros, já que não só se instalou no salazarismo, perdendo qualquer iniciativa ou capacidade de imaginação e criação culturais, como, depois do seu fim, oscilou, perigosamente, entre o entrismo oportunista e cego, o absentismo inoperante ou, optando pela ‘doença infantil do direitismo’, praticou o maximalismo verbal (nem sequer se lhe pode chamar ideológico) e a fuga para diante, actuando em termos que lhe eram, à partida, vedados e suicidas”. Isto foi escrito há mais de duas décadas e é óbvio que Paulo Rangel e Nuno Melo, adeptos do “maximalismo verbal”, não o leram nem fazem ideia de que este ensaio existe e que a direita o ignora.
Não, não estou de modo nenhum interessado em catequizar e pregar à direita, da qual discordo profunda e radicalmente. Mas tenho respeito intelectual por aqueles, poucos, que sabem organizar, reflectir e projectar politicamente o seu pensamento. E irrita-me solenemente o “maximalismo verbal” sem sentido, que não consegue ir além da crítica esbaforida e do alarido ensurdecedor. Jaime Nogueira Pinto tem razão quando critica a “arrogância de quem não aprendeu nada” e por isso se atreve a “voltar com as receitas do miserabilismo direitista e envergonhado, do reacionarismo primário, conselheiral, folclórico, feito de dogmas providencialistas e patrioteiros”. E aqui, digo-vos eu, estão as caras chapadas de Rui Rio (providencialista), Paulo Rangel (conselheiral), Assunção Cristas (folclórica) e Nuno Melo (patrioteiro). Falta-lhes, cito, “o estudo, a meditação, o trabalho” e “a coragem do ascetismo e dignidade”. Parece escrito hoje.
Infelizmente, é verdade e chega a ser assustador – o que tanto vale para a direita como para a esquerda (o centro é o vácuo) – o que escreveu Gilles Lipovetsky no seu ensaio sobre A Era do Vazio: “Já nenhuma ideologia política é capaz de inflamar as multidões, a sociedade pós–moderna já não tem ídolos nem tabus, já não possui qualquer imagem gloriosa de si própria ou projecto histórico mobilizador; doravante, é o vazio que nos governa, um vazio sem trágico nem apocalipse”. E pior ainda é o narcisismo: “Poderes cada vez mais penetrantes, benevolentes, invisíveis, indivíduos cada vez mais atentos a si próprios, ‘fracos’, ou seja, lábeis e sem convicção – a profecia tocquevilliana realiza-se por completo no narcisismo pós-moderno”. Que o diga Marcelo PR!
Quando leio num jornal que o “Presidente assumiu-se líder natural da direita”, já nem consigo ficar apreensivo. Eles dizem o que lhes vem à boca, eles escrevem o que lhes vem à mão. Mas não deixa de ser divertido haver quem ache que o “líder natural da direita” é o ex-comentador e entertainer da TVI eleito PR – astucioso, extravagante e rédea larga – que não sabemos ao certo o que pensa politicamente (porque ele nunca o disse nem passou a escrito), mas sabemos que é de direita, é contra o aborto, é beato e afeito a curvar a espinha para o beija-mão, é enérgico defensor da indissolubilidade do casamento católico (pelo menos do seu) e, sobretudo, é um fervoroso adepto dos beijos, abraços e selfies enquanto “política de afectos e de proximidade”, o que cabe perfeitamente na “era do vazio”, dado que é política vazia e no vazio!
É em períodos como este, de crise da direita, que a esquerda não devia dar descanso à reflexão sobre a sua prática, sobre as transformações necessárias e os seus objectivos políticos quanto ao futuro, para além das peripécias do quotidiano e das metas à vista. Bem sei quanto isso é difícil dentro dum partido que se considera alternativa de poder e está habituado a exercê-lo, nem sempre bem. Por isso saltei cá para fora e me tornei independente de qualquer disciplina militante. E só não o fiz mais cedo do que acabou por acontecer (no início de 2015) porque havia um punhado de imbecis – alguns deles habituados a mendigar sinecuras ao poder – que incitavam a direcção do partido (o PS) a expulsar-me. Pobre gente essa, sempre pronta a responder, jubilosa, a um comando característico da tropa: “Rastejar até mim!” O certo é que nunca me obrigaram a fazê-lo. E é verdade que nunca rastejei, nem no jornalismo nem na política.
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990