Caravaggio e a história da arte que continua  a ser reescrita

Caravaggio e a história da arte que continua a ser reescrita


Cinco anos depois de ter sido descoberto no sótão de uma casa em Toulouse, um Caravaggio perdido desde 1617 vai a leilão. Com os especialistas cada vez menos divididos, Judite e Holofernes pode tornar-se a obra mais valiosa do mestre italiano.


Há cinco anos, uma família de Toulouse descobriu no sótão da sua casa uma pintura cuja existência desconhecia. Pelo menos, em sua posse. Relatos bem antigos havia, em cartas trocadas entre mercadores nos primeiros anos do séc. xvii, da existência de uma obra de Caravaggio retratando Judite a decapitar o general assírio Holofernes depois de o ter seduzido. Contra todas as probabilidades, não só a maioria dos especialistas acreditam tratar-se do original pintado por Caravaggio entre 1606 e 1607 como está em melhor estado de conservação do que a maior parte das pinturas do mestre italiano.

Agora, Judite e Holofernes, que entretanto ficou já conhecida como “o Caravaggio de Toulouse”, vai ser levada a leilão por um valor que se estima possa atingir os 150 milhões de euros. A confirmar-se, baterá o recorde das obras do próprio pintor italiano – o Caravaggio até aqui arrematado por um valor mais alto foi Rapaz Descascando Fruta, uma pintura datada entre 1592 e 1593, vendida num leilão na Sotheby’s, em Nova Iorque, por 145 mil dólares (129 mil euros) em 1998.

Até ao leilão, marcado para 27 de junho, em Toulouse, a obra, desaparecida desde 1617 e cujo valor está avaliado entre os 100 e os 150 milhões de euros, está em exposição na Galeria Colnaghi, em Londres.

No final de fevereiro, numa conferência de imprensa que teve lugar nessa mesma galeria, o colecionador francês Marc Labarbe – por coincidência, amigo da família que descobriu a obra no seu sótão – anunciou que licitaria pelo Caravaggio redescoberto, de cuja autenticidade está convicto. “Não tenho nenhuma dúvida porque trabalhei nesta obra durante cinco anos”, afirmou então o especialista, defendendo-se dos argumentos dos mais céticos, que têm levantado questões sobre a autenticidade da obra: “Quando apresentámos o quadro em Itália sabíamos que estávamos a dar início a uma disputa entre escolas, porque os especialistas se odeiam entre eles.” À medida que a data do leilão se aproxima, contudo, o consenso quanto à autoria da obra tem-se tornado cada vez mais alargado entre os especialistas.

uma das melhores pinturas de Caravaggio Ainda há dias, Eric Turquin, um dos maiores especialistas franceses na pintura dos chamados “grandes mestres”, afirmou, em declarações à AFP, que não só está convencido de que se trata de um verdadeiro Caravaggio como de uma descoberta revolucionária. E explicou: “Não só é um Caravaggio como, de todas as [obras de] Caravaggio conhecidas até hoje, esta é uma das suas melhores pinturas”, explicou. “Está em extraordinário estado de conservação, muito melhor do que os Caravaggios que vi em Nápoles”.

Isto enquanto outros especialistas, sobretudo em Itália, continuam com dúvidas sobre a autenticidade da pintura encontrada por acaso num sótão. Uma minoria que, ainda assim, se fez ouvir bem alto ao levantar a questão de que poderá tratar-se de uma cópia do artista flamengo Louis Finson, que trabalhou com Caravaggio. Há também quem, não negando a autoria do pintor barroco, acredite que Finson lhe tenha dado “umas pinceladas” depois de Caravaggio ter fugido para Malta, em 1607.

Teorias postas de parte por Turquin que, acusando esses especialistas de “falarem sobre uma obra que não viram”, é firme na sua convicção de que se trata realmente do original de 1606, cuja existência foi pela primeira vez referida numa troca de correspondência entre duques italianos e colecionadores no início do séc. xvii. Sobretudo depois do processo de limpeza a que a descoberta foi submetida em janeiro passado, ao longo de três semanas. Através de uma análise de raio-X, detalha o especialista, foi possível perceber que “a pintura mudou muito enquanto ia sendo pintada, com muitos retoques”.

Facto que faz cair por terra a possibilidade de se tratar de uma cópia: “Quem copia não faz alterações daquelas, copia”. Segundo a AFP, foi diante da própria pintura que, em Paris, Turquin fez questão de mostrar na tela as provas das alterações que foram sendo feitas pelo artista à medida que pintava. “Ao fim de cinco anos de reflexão, ninguém foi capaz de argumentar contra isto. Dizem que é impossível porque Caravaggio não pode ter pintado mais de 65 telas… Para eles, a história da arte está feita”.

Pelo contrário, recorda a forma como no período em que se acredita que a (até aqui) perdida Judite e Holofernes foi pintada, a vida de Caravaggio, que morreria em 1610, aos 38 anos, tinha mudado radicalmente: fugido em Nápoles depois de ter sido condenado pelo homicídio de um homem em Roma, tinha passado a pintar a um outro ritmo e num estilo que, argumenta, refletia uma visão mais negra da vida. “De forma mais espontânea e surpreendente. Mudou o seu estilo, pintando de forma mais contida, utilizando um fundo negro sobre qual acrescentava pinceladas acentuadas”.

Turquin diz ter guardado Judite e Holofernes no seu próprio quarto ao longo de um ano e meio, onde terá sido visitado por uma série de historiadores e restauradores. Só depois de o italiano especialista em Caravaggio Nicola Spinosa o ter visitado, para avaliar a sua autenticidade, anunciaram a descoberta. “Quisemos esperar até termos a certeza [da autenticidade] antes de o apresentarmos ao mundo”.