Piranhas  – Os Meninos da Camorra. Depois da inocência, perde-se o quê?

Piranhas – Os Meninos da Camorra. Depois da inocência, perde-se o quê?


O filme que deu a Roberto Saviano um Urso de Prata na última edição do Festival de Cinema de Berlim chega esta semana às salas. O i entrevistou o realizador, Claudio Giovannesi.


A história é a de um grupo de adolescentes que, à procura do dinheiro fácil que veem como única forma de aceder àquilo de que o sistema os privou à nascença, mas também de justiça, enveredam pelo mundo do crime organizado. O pano de fundo, Nápoles – não fosse esta uma história sobre a camorra. Mais uma assinada por Roberto Saviano, popularizado pela publicação de Gomorra, em 2006, que dez anos depois publicou o seu primeiro livro de ficção: La Paranza dei Bambini, a partir do nome de um processo judicial de um caso passado há quatro anos naquelas mesmas ruas (The Piranhas, na edição em inglês). 

Desde a série que adaptou Gomorra à televisão italiana que o escritor e Claudio Giovannesi, que realizou dois episódios, se conhecem. Daí que a adaptação de Piranhas – Os Meninos da Camorra ao cinema nos chegue apenas um ano depois da publicação do romance homónimo (Alfaguara, 2018) em português. Uma adaptação livre, faz questão de sublinhar o realizador, e a seis mãos – Claudio Giovannesi, Roberto Saviano e o napolitano Maurizio Braucci. As seis que dividiram, em fevereiro passado, o Urso de Prata de Melhor Argumento por este filme no Festival de Cinema de Berlim, que teve aí a sua estreia internacional. Às salas portuguesas, Piranhas – Os Meninos da Camorra chega esta semana, depois de ter já sido exibido na última edição da Festa do Cinema Italiano, que em abril passado trouxe o realizador a Lisboa. Uma visita que o i aproveitou para uma conversa – ainda antes da trágica notícia do homicídio de um dos seus atores, Artem Tkachuk, às mãos de um grupo de jovens como aqueles que retrata este último filme de Claudio Giovannesi. 

Porque decidiu adaptar este último romance de Roberto Saviano?

Este romance foi-me proposto pelo Roberto, com quem tinha feito dois episódios da Gomorra, a série [cocriada e coproduzida pelo autor do bestseller homónimo], e a produtora.

A decisão de adaptar mais este livro ao cinema foi quase simultânea com a sua publicação, então. 

Sim, foi há dois anos. Quando me chegou a proposta de adaptar este livro, aceitei porque me interessou a ideia de fazer um filme sobre a perda da inocência. Este filme não tem nada a ver com a Gomorra, que é um trabalho de género, entre o crime e o noir. Interessava-me fazer uma coisa completamente diferente, uma exploração dos sentimentos. Quando me fizeram a proposta, aceitei com a condição de fazermos uma coisa diferente, sobre as emoções, um filme que contasse o que acontece aos adolescentes, que explorasse sentimentos como o amor ou a amizade num cenário de crime. E assim chegámos aqui.

Interpretei-o como um filme que explica como chegaram àquele lugar, à criminalidade. Uma história que quase lhes retira a responsabilidade porque, no fundo, é como se não pudessem ter sido outra coisa. Como se o dinheiro, e o dinheiro fácil, fosse a única saída para eles: a única forma de poderem aceder ao mundo que lhes é constantemente vedado como adolescentes que nasceram e cresceram à margem da sociedade. Nesse sentido, estes rapazes são-nos apresentados, mais do que como jovens delinquentes, como vítimas de um sistema que os exclui desde que nasceram.

O discurso é esse: são adolescentes que desejam o que deseja qualquer adolescente, como filhos de uma sociedade de consumo. E, num lugar onde as instituições, o Estado e a escola não estão presentes, a criminalidade surge como a única forma de lá chegarem. Mas permanecem inocentes porque são adolescentes: o que fazem, fazem-no de forma inconsciente. Como se estivessem a entrar num jogo, mas um jogo do qual já não poderão sair. 

O livro foi editado há menos de um ano em português [Alfaguara, 2018], ainda não o li. Esta ideia já lá estava ou corresponde a uma camada acrescentada pelo filme?

O filme é muito diferente do livro. No filme procuro uma identificação com as personagens, procuro chegar às suas emoções, à forma como vivem os seus sentimentos e de que forma as suas escolhas os comprometem. O livro é sobretudo sobre a luta pelo poder, não se foca tanto na vida sentimental – do primeiro amor à amizade que se transforma nesta irmandade. 

A certa altura, no momento em que ganha consciência justamente de que este jogo é um jogo perigoso, o Nicola [Francesco Di Napoli] quer sair para proteger a namorada [Viviana Aprea]. Fale-me um pouco sobre esta curva da personagem principal.

Exato. A personagem principal depara–se com esse problema. A certa altura quer voltar atrás, quer ser apenas um adolescente. Mas isso já não é possível. 

No início, aliás, a razão pela qual ele começa é ela: quer entrar na discoteca com ela e é barrado.

Claro que eles querem, como os outros rapazes, comprar coisas, entrar em discotecas, conquistar raparigas, mas há também sempre esta ideia de [fazer] justiça. No início fá-lo como um idealista: quer devolver a justiça ao bairro. O problema é que a justiça não se pode impor através da máfia. Não se pode fazer o bem através do mal. O que o filme diz é isto. E também que a máfia é um lugar de onde não se pode sair. Tanto que a máfia é uma palavra que não se diz. Como não se diz camorra. São palavras que só se usam nos jornais. A palavra que se usa é “sistema”. 

Porquê?

Saviano também fala em sistema. Porque é mesmo um sistema que substitui o do Estado. 

Os Meninos da Camorra é o primeiro livro de ficção de Roberto Saviano, mas, como Gomorra, continua a ter por base a realidade.

Em Itália, o romance chama-se La Paranza dei Bambini, que é o nome de um processo judicial de há quatro anos, altura em que, em Nápoles, um grupo de jovens armados tentou tomar o bairro. A partir daí, o Roberto Saviano decidiu escrever um livro, mas um livro de ficção, ou seja, conta a história de um grupo de jovens que tentam tomar o poder, mas de forma ficcionada. E eu, tendo a realidade e tendo o romance do Roberto, tive também a realidade de agora, que observei durante os dois anos em que vivi em Nápoles para preparar o filme. Porque sou de Roma, tive de me mudar para Nápoles. 

Podemos dizer que este filme é uma espécie do que vem antes, uma justificação, para aquilo a que se assistiu em Nápoles há quatro anos?

Não, porque não quis fazer um filme sobre Nápoles. Em Roma, também estão a passar-se coisas deste género. Este filme é um filme sobre o que acontece com um grupo de adolescentes num lugar onde o Estado está ausente. Fazer um filme sobre Nápoles, sociologicamente, não me interessava, não queria fazer uma crónica napolitana. Nápoles dá-nos o ambiente, mas este não é um filme sobre Nápoles: é um filme que, através de Nápoles, fala sobre o mundo. 

Têm-se feito ao longo dos anos muitos filmes sobre este tema. Como vê a forma como esta realidade tem sido retratada no cinema italiano e não só? Acredita que o cinema tem ou deve ter um papel aqui?

Respondo às duas perguntas de uma vez: quando faço um filme, coloco no centro as personagens. E não as julgo, não estou a pensar se são boas ou se são más. Vejo–as como seres humanos. A empatia que procuro, sem juízos, é o que procuro despertar no público. O que me interessa é mesmo o ser humano. E no cinema há duas escolhas: ou o filme de género, com lutas pelo poder, alianças e traições – e de género já se fizeram muitos filmes, não me interessa -; ou um filme sobre o ser humano, sobre os nossos irmãos, sobre os nossos filhos. 

Como chegou a este elenco de atores não profissionais?

Fiz seis meses de casting, vi 4 mil rapazes. Desses 4 mil chegámos a estes oito, incluindo o protagonista. E este é um número real, porque não foi um desses castings em que as pessoas vêm ter connosco; fomos nós que andámos nos bairros à procura. Procurávamos um rosto inocente, porque a história era sobre a perda da inocência. Fizemo-lo também porque precisávamos de conhecer a realidade que este filme ia retratar. Não falo da realidade criminal, porque eles não são criminosos, mas cresceram com essa realidade muito próxima. 

Acha que seria possível contar esta história com um elenco de atores profissionais?

Não, não era. Primeiro porque, com esta idade, há poucos atores profissionais. Segundo, porque o que eles trazem ao filme era impossível de representar. Só eles conhecem. E tiveram a coragem e a força de fazer este filme. Eles são miúdos que vivem de forma honesta. Não estão na escola mas trabalham, e têm amigos que não fizeram a mesma escolha. 

O que acrescentou a experiência deles ao filme? O argumento foi sendo reescrito à medida daquilo que poderiam, com as suas experiências, trazer a esta história?

Os rapazes são o filme, e isto é muito importante. O filme foi rodado de forma cronológica e eles não conheciam nem o argumento nem o livro. A cada dia, a cada noite, avançávamos na história: explicávamos-lhes o que vinha a seguir e eles próprios traziam as suas experiências para a história. Embora não sejam criminosos, repito, é importante sublinhar isto. 

Os diálogos foram sendo mais ou menos improvisados, então? Como é que os dirigia ?

Foi um trabalho longo, de meses, aquele que fiz com eles. Para cada cena havia um sentimento, um objetivo descrito, e, pela repetição, encontrávamos a cena. Chegámos a ter 40 takes para uma cena. No mínimo fazíamos dez ou 15. 

Eles já se conheciam, eram mesmo amigos?

Ainda bem que pergunta. Trabalhámos de forma a que a amizade que vemos retratada no filme não fosse ficcionada, que fosse verdadeira. Passaram muito tempo juntos antes da rodagem e hoje são amigos. 

Isso numa fase de ensaios ou de preparação antes da rodagem?

Foi um trabalho não tão centrado nas cenas em si, mas nos sentimentos que iam ser explorados no filme. 

O Roberto Saviano foi estando presente no processo?

O Roberto vive em Nova Iorque, eu vivo em Roma e o Maurizio [Braucci, o terceiro coargumentista] em Nápoles. Depois mudei-me para Nápoles, para trabalhar no filme, durante dois anos, e como o Roberto não pode entrar em Nápoles continuámos a trabalhar à distância: eu e o Maurizio em Nápoles, com o Roberto em Nova Iorque. Em Nápoles, é mais conhecido do que o Papa. 

Em que bairros rodaram o filme?

Nos bairros de Rione Sanità e Quartieri Spagnoli. Nápoles, ao contrário de outras cidades italianas, continua a ter um centro histórico que ainda é popular. O centro histórico de Nápoles continua a ter a beleza da história da cidade, com a sua identidade. Cidades como Roma ou Milão já não têm isso. É a famosa gentrification.