Luís Mourão (1960-2019). Pisar no real com exactidão, contornar o pântano

Luís Mourão (1960-2019). Pisar no real com exactidão, contornar o pântano


Penso nele pisando agora com exactidão esse outro lado do real, contornando o pântano do tempo, o deserto que há para lá de toda a ausência e da morte.


Era um ensaísta brilhante, um colega muito estimado, além de um amigo, o Luís Mourão. Trabalhámos algumas vezes juntos, fazíamos parte do mesmo grupo de investigação na Universidade do Minho, partilhávamos leituras e o mesmo interesse por certos autores da literatura portuguesa, entre eles Raul Brandão, Carlos de Oliveira, Maria Gabriela Llansol, Vergílio Ferreira ou Gonçalo M. Tavares. Sem falar de Herman Melville e de uma obra tão fascinante como Bartleby, a propósito da qual um dia nos havíamos de envolver em acalorada e estimulante discussão. 

Acabo de me despedir do Luís, na pequena igreja românica de Santa Eulália de Tenões (Braga) que não chegou para acolher todos aqueles a quem ele de alguma forma marcou ao longo da vida com o seu sorriso acolhedor, a sua calma, a sua generosidade e disponibilidade para ouvir os outros, com o seu saber. Regressando agora ao desamparo do real, penso no Luís como alguém que nos vai fazer falta. E quando aqui uso o plural, quero referir-me tanto a um “nós” académico, como a um “nós” leitores e amantes da literatura, como a um “nós” mais vasto, a um “nós” inclusivo, a um “nós todos” humano, sem distinção de crença, de cor, de género ou de classe. Porque o Luís era um académico, um leitor, um cidadão e um ser humano excepcional.

A formação de base em Filosofia, para além de uma sensibilidade invulgar, deram ao Luís um olhar diferente sobre os textos e os autores com os quais viria a dialogar ao longo da vida. A literatura era a sua paixão, coisa cada vez mais rara no meio académico de hoje onde o frenesim da quantidade, a pirotecnia do currículo e a pressão do algoritmo se têm tornado dominantes. Gente (académicos, em particular) com esta paixão pela literatura faz-nos falta. Mas também gente (académicos, em particular) com a estatura humana do Luís. Nunca se deixou seduzir pela ribalta, manteve sempre um perfil de discrição (que, de resto, Pedro Eiras sublinha no texto de Luís Miguel Queirós “Luís Mourão: uma releitura singular da ficção portuguesa”, publicado no jornal Público (7-06.2019), nunca se deixou levar na vertigem das modas várias que nos consomem e deixando cada vez mais sem norte. Era um “homem antigo”, como ele gostava de dizer. Grego, além do mais. Talvez por essa “antiguidade” nos tenha dado, paradoxalmente, uma obra tão inovadora como “Um Romance de Impoder- a Paragem da História na Ficção Portuguesa” (Angelus Novus, 1997) que é ainda hoje uma obra de referência no âmbito dos estudos sobre a ficção portuguesa contemporânea. Ou ainda o não menos desafiante conjunto de ensaios, e não apenas pelo título, Sei que já não, e todavia ainda (Angelus Novus, 2003).

Para além do ensaísta de fulgor, havia a serenidade do homem e do académico, o humor ácido ou enternecido, a acutilância do olhar, a fina ironia. E havia sobretudo o amigo que hoje quero lembrar de um modo especial.

Em determinado momento das nossas vidas, demos por nós a amparar-nos um ao outro, num desses improvisos com que o palco da vida nos depara. Em 2017, o Luís sofreu uma perda que o deixou sem chão, tal como eu sofrera alguns anos antes. Em Julho desse ano, escrevia eu um post melancólico sobre a angústia das férias, onde dava conta da “solidão que vem com o verão”, do desamparo que há em fazer malas, da paisagem que sempre nos devolve um lugar de ausência e do meu desejo impossível “de ficar, por um instante, morando nos olhos de alguém”. O Luís leu-me e enviou-me então uma mensagem particular que agora resgato do tempo e aqui transcrevo porque, estou certa, ele me autoriza:  

Era para já te ter falado antes, e depois na quinta fiquei siderado ao ler-te. Tenho tido umas saídas a Paris e quando estava a arrumar a mala tive uma intuição nebulosa próxima do teu pensamento, mas deixei de lado, arrumei apenas a mala e despachei-me para outros afazeres. Não marquei nada para agosto e ao ler-te percebi exatamente porquê.

São tão exatas as tuas palavras, Isabel! E tenho constatado que quanto mais exatos conseguimos ser nestas coisas, mais nos conseguimos manter na realidade. Às vezes as pessoas pensam que nos estamos a queixar ou queremos colo, e embora ambas as coias sejam legítimas, estamos apenas a ser exatos, a pisar no real, contornando o pântano.

Ainda comecei a ler algumas coisas sobre luto, mas desisti. Não é que estivessem erradas, apenas curtas. E esgotado o trivial, reconheci-me pouco nas emoções e reações. Somos a nossa história, e temos de continuar a contá-la nos seus próprios termos. Dizer que alguém nos falta poderá ser universalmente partilhável, e não subestimo esse mínimo entendimento comum. Mas dizer que nos falta morar nos olhos de alguém, sendo em parte o mesmo, já é bastante diferente. Enfim, tu sabes o que quero dizer”.

Pisar no real com exactidão, contornar o pântano, continuar a contar a nossa própria história, era uma determinação comum. A mensagem continuava, num ritmo improviso de jazz de que ambos gostávamos, entre sons de Herbie Hancock e os dois pianos do Chick Corea que eu escutara ao vivo por esses dias. O Luís Lamentava ter sabido do concerto do Hancock “em cima da hora” e perguntava-me se o que ele tocara era “muito funky ou mais jazz”. “Gosto dele sobretudo lá para trás, a época do Maiden Voyage. E daquele a dois pianos com o Corea: foi meu álbum de cabeceira durante muito tempo”. Sons de jazz entrecortados pela dor e por uma imensa urgência de vida: “Depois de se ter passado pela necessidade de adrenalina do estado de exceção, a realidade é uma benção de tranquilidade tanto quanto uma terrível deceção.”

Em jeito de provocação, desafiava-me com esta selfie auto-irónica: “Quase fazemos um informal grupo de auto-ajuda…”. Rimos da imagem caricatural que a nenhum de nós agradava, esconjurando ambos qualquer forma de auto-comiseração.

Ao longo destes anos, o grupo informal de auto-ajuda deixaria marcas indeléveis. Trocámos sons de jazz, imagens de filmes, excertos de livros, palavras, uma partilha ditada pela vontade firme de pisar o real. De sermos exactos para nos mantermos à tona da realidade. À tona de nós próprios.

O Luís encontraria pouco depois uns olhos onde morar. E a alegria, qualquer coisa próxima da felicidade, apesar de tudo. Apesar desse tudo inominável que é a crueldade da doença que o levou neste final de semana.

Penso nele pisando agora com exactidão esse outro lado do real, contornando o pântano do tempo, o deserto que há para lá de toda a ausência e da morte. Pisando com exactidão o outro lado do brandoniano muro, da vida que ele tanto amou, fosse em modo de bênção ou de decepção. E não posso deixar de desejar que desse lado do real, os sons exactos de Hancock, os dois pianos de Corea (pontuados pelo saxofone de Coltrane) se apurem no mais sublime dos improvisos só para o receber.