O Presidente da República apelou, no discurso que fez nas comemorações do 10 de Junho, que “não podemos nem devemos omitir ou apagar os nossos fracassos coletivos” ou “os nossos erros antigos ou novos”. Para Marcelo Rebelo de Sousa, “não podemos nem devemos esquecer ou minimizar insatisfações, cansaços, indignações, impaciências, corrupções, falências da justiça, exigências constantes de maior seriedade e ética na vida pública”.
O recado ficou dado num discurso em que o chefe de Estado quis puxar pelo melhor dos portugueses. “Somos muito mais do que fragilidades ou erros. Temos uma comunidade das mais inclusivas e coesas”. E não faltaram os bons exemplos como António Guterres, Mário Centeno ou a seleção portuguesa. Mas também os portugueses anónimos que vingam lá fora. “Um português que ganhou o prémio de melhor investigador, uma portuguesa que foi considerada a melhor enfermeira num país estrangeiro” ou “muitos trabalhadores que foram considerados os mais qualificados”. Marcelo não esqueceu a tragédia dos incêndios que, em 2017, alertou o país para os problemas do interior e, em Portalegre, voltou a apelar para a necessidade de “acordar mais cedo para os Portugais demasiadas vezes esquecidos”.
Inconformismo Não foi pacífica a escolha do Presidente da República para presidir à comissão organizadora das comemorações do Dia de Portugal. “Várias personalidades”, relatam notícias do início deste ano, contestaram que João Miguel Tavares se juntasse a nomes como António Barreto, Sobrinho Simões, Sampaio da Nóvoa ou Silva Peneda. O jornalista e comentador do programa Governo Sombra não ignorou as críticas e lembrou, no discurso que fez na cerimónia do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, que muita gente “ficou espantada”.
Mas não foi por causa da polémica sobre a escolha de Marcelo que o discurso foi bastante partilhado nas redes sociais ou comentado pela classe política com alguns sinais de desagrado. Foi por ter lançado vários desafios aos políticos e ter abordado questões como a corrupção ou as desigualdades.
João Miguel Tavares, natural de Portalegre, onde se realizaram as comemorações, começou por se congratular com um país que lhe permitiu subir “aos poucos” na vida sem “qualquer ligação à capital e às suas elites”. Mas o otimismo ficou por aí para dar voz ao “inconformismo” com que o chefe de Estado justificou a escolha. “A integração na Europa do euro não correu como queríamos. Construímos autoestradas onde não passam carros. Traçámos planos grandiosos que nunca se cumpriram. Afundámo-nos em dívida. Ficámos a um passo da bancarrota. Três vezes – três vezes já – tivemos de pedir auxílio externo em 45 anos de democracia. É demasiado”, disse Tavares, alertando que “a corrupção é um problema real, grave, disseminado, que a justiça é lenta a responder-lhe e que a classe política não se tem empenhado o suficiente a enfrentá-la”.
Mas , alertou, “a corrupção não é apenas um assalto ao dinheiro que é de todos nós – é colocar cada jovem de Portalegre, de Viseu, de Bragança mais longe do seu sonho”. Sem referir diretamente a polémica com os laços familiares no Governo socialista, João Miguel Tavares defendeu que “cada família, cada pai, cada adolescente convence-se de que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas. Que é preciso ter os amigos certos. Que é preciso nascer na família certa”.
O apelo à classe política À classe política, o jornalista deixou um apelo: “Aquilo que se pede aos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, é que nos deem alguma coisa em que acreditar. Que alimentem um sentimento comum de pertença. Que ofereçam um objetivo claro à comunidade que lideram”. Isto porque, continuou, os portugueses precisam de sentir que contam para alguma coisa além de pagar impostos. “É preciso dizer ao velho que perdeu tudo nos incêndios de Pedrógão: tu contas. É preciso dizer ao miúdo que habita na pobreza do Bairro da Jamaica: tu contas. É preciso dizer ao cabo-verdiano que trocou a sua terra por Portugal, em busca de um futuro melhor para os seus filhos: tu contas, e os teus filhos não estão condenados a passarem o resto das suas vidas a limpar as casas da classe alta de Lisboa ou do Porto”.
O discurso do comentador foi muito partilhado nas redes sociais e alguns políticos não esconderam que não gostaram de o ouvir. O socialista Porfírio Silva, por exemplo, confessou que está “um bocado farto de políticos, assumidos ou não, que falam pelo povo em oposição aos políticos”. As comemorações do Dia de Portugal continuam hoje em Cabo Verde.