Escreveu um dia Alexandre O’Neill sobre o medo: “O medo vai ter tudo/ quase tudo/ e cada um por seu caminho/ havemos todos de chegar/ quase todos/ a ratos”. Haveria de existir uma lei contra o medo. Ainda por cima no futebol que devia ser, por todas as razões e mais algumas, um lugar de coragem e de ousadia. Mas a primeira palavra que me surgiu quando comecei a escrever estas linhas foi medo. Portugal e Holanda tiveram, logo de início, medo. Depois o jogo encheu-se de outros sentimentos, positivos e negativos como sucede com todos os jogos, porque há uma dinâmica que obriga a, aqui e ali, afastar o pensamento inicial.
Quando estamos perante um encontro com estas características, desejamos um golo precoce, madrugador. Um golo que abra os diques dos sentimentos contidos, revertendo os polos magnéticos da Terra. Ora, não foi isso que sucedeu. E coube-nos esperar para perceber qual dos dois finalistas teria em si o desejo de um golpe de asa que alterasse o que ameaçava ser, como sublinhava o Alencar do Eça, uma grandessíssima estucha.
Diria o meu amigo Rui Laires, com o seu habitual sentido de humor corrosivo, que na teoria o melhor seria aplicar frente à Holanda o futebol aéreo visto que, afinal, sempre se trata dos Países Baixos. Fernando Santos não foi por esse caminho, mas sem dúvida que decidiu jogar mais baixo, isto é, com uma equipa mais recuada do que frente à Suíça. A despeito do seu discurso da véspera, assim de peito feito, prometendo um estilo ofensivo e um Portugal de ataque, tratou de se precaver com Danilo a titular, afastando Ruben Neves, quanto a mim um dos melhores do jogo da meia-final, e fez a vontade a alguns dos seus críticos, deixando no banco João Félix para dar lugar a Gonçalo Guedes.
Foi o Fernando Santos que nos habituámos a conhecer. Primeiro com a sua tendência para mudar a equipa de jogo para jogo, algo que defende com a teoria de que são os adversários que estabelecem os onzes que faz entrar em campo, algo que não deixa de ser contraditório com a nossa realidade de campeões da Europa, mas enfim; depois com uma invasão de receios que parecem surgir-lhe durante a noite, na véspera dos jogos, mesmo depois de ter acabado de bater a Suíça por 3-1. Disse aqui, nestas páginas, que nem sempre uma boa ideia dá bons resultados, mas sendo boa, a ideia acabará por se impor. Ronaldo, Bruno Fernandes, Bernardo Silva e João Félix, estão condenados a entender-se na seleção nacional, mais cedo ou mais tarde, por via de serem os mais talentosos e capazes. Mas não ainda, pelos vistos e segundo a visão do engenheiro. E o resultado deu-lhe outra vez razão.
Percebeu-se cedo que, desta feita, foi pedido a Ronaldo que se conservasse mais no meio. E com Danilo ligeiramente recuado em relação a William Carvalho e Bruno Fernandes, procurava-se criar uma caixa onde meter Frenkie de Jong, diminuindo a sua influência indispensável na construção de jogo holandesa. Já Guedes pareceu ter ordens para se preocupar primeiro em ajudar Guerreiro, que tanto foi pressionado pelos suíços, e só depois ir fazer companhia a Ronaldo e Bernardo Silva. A exigência, sobretudo em termos físicos, era grande.
Tal como tinha acontecido frente à Inglaterra, de Jong tratou de recuar quase até à zona dos centrais, que funcionam num esquema hibrido, dependendo da movimentação de Blind, para poder jogar mais à vontade. Algo que lhe dá visão periférica mas o deixa longe da baliza contrária.
Expetativas Um Portugal-Holanda cria, obrigatoriamente, expetativas de futebol ofensivo. Tem sido assim ao longo dos tempos. Bem puderam, os que tinham água na boca, engoli-la bem cedo. Os minutos foram passando e não se saía de um certo nha-nha-nha corriqueiro. Havia tanta gente junta no meio que, na altura de atacar, os que o faziam corriam mais do que a bola ou, então, corriam demais com ela nos pés.
Não deixou, apesar disso, de ser Portugal mais incomodativo para Cillessen do que a laranja (ontem forrada de azul-caraíbas) para Patrício. O povo, nas bancadas, dava largas ao entusiasmo patriótico, mas o excesso de “aaahhhs!” e “ooohhhs!” não passava disso mesmo, de um excesso, nesta caso admirativo para lances muito pouco dignos de pontos de exclamação.
Confortáveis no seu papel secundário, os holandeses iam deixando andar. Viam Ronaldo encostar-se cada vez mais ao lado esquerdo, para tentar partir daí em velocidade, e tapado pelo seu capitão, Gonçalo Guedes encurralado como uma andorinha numa gaiola, o lugar menos indicado para quem gosta de andorinhar.
Não foi de estranhar que o intervalo chegasse dentro de uma esterilidade própria de um futebol paliativo, cada vez mais aplicado em finais mas que as finais decididamente não merecem.
Se há algo difícil de quebrar é a inércia. Quando se entra numa espiral de reduzidas ambições é difícil fazê-la rodar em sentido contrário. Portugueses e holandeses como que se tinham condenado ao destino de uma inevitável inferioridade. A vitória premiaria um deles com a alegria e o título de vencedor da Liga das Nações e condenaria o outro à tristeza absoluta de não querer ir além do seu tamanho. Claro que os que no campo se iam batendo (e lá bater-se, eles bateram-se!) podem responder a isto como o domador de leões respondia a quem o criticava: “Anda dizer-me isso, cá dentro na jaula!” De certa forma foi isso que fez Bernardo Silva com aquele rasgo de valentia e perícia que deu a Gonçalo Guedes a possibilidade de um remate ao qual Cillessen não deu resposta adequada.
O golo de Portugal projetava a seleção para essa tal vitória que apagaria do quadro negro os receios traçados a riscos brancos de giz. Talvez, neste momento, já ninguém queira saber das fraquezas e dos defeitos exibidos, afogados todos no deleite de mais um triunfo internacional que o engenheiro Fernando Santo trouxe consigo desde que tomou o comando da seleção portuguesa. Estilo? Que se quilhe o estilo, dirá ele para com os seus botões, seguro de que, para usar a expressão de Mário Quintana, o estilo não passa de uma dificuldade de expressão.
Cabia à Holanda libertar-se do opróbrio da sua atuação timorata, já que a taça lhe fugia por entre os dedos e, sem ela, nada lhe ficava nas mãos, nem sequer uma medalha por bravura. Portugal encolheu-se, entrou Rafa, mais um baixinho para atemorizar os Países Baixos. Em seguida, com Moutinho, já éramos o País dos Baixinhos a lutar contra o mar azulado e confuso daquela laranja tristonha e sem ideias. Que pagava os custos irremediáveis de mais uma derrota frente a Portugal. Restava apenas esperar. E, se calhar, foi esse o segredo do triunfo. O segredo de saber esperar.