Se me permitem, o meu ponto de partida é autobiográfico (até porque a autobiografia é o derradeiro fundamento da teoria). E, aproveitando o lanço, permitam-me também que deixe já aqui explícita essa “arte de citar sem aspas”, que se faz sempre já a meio de um caminho, sem perceber ao certo (porque é irrelevante notá-lo) de que ponto partimos, de que lado fica a margem do que lemos, em que parte a vida se sobrepôs. Porque a primeira frase deste texto, na verdade, não é minha, mas do Luís, num ensaio seu sobre Vergílio Ferreira. E comecei por aí porque uma das maiores virtudes de Luís Mourão, na qualidade de ensaísta, é fazer essa passagem com a maior das naturalidades: o livro é este, o autor é tal, mas a vida, sempre, pelo meio do discurso, a iluminar a partir de dentro o sentido desse livro, desse autor.
Um pouco isto, talvez: um ato de leitura que não se fica pela exegese crítica, pelo entulhar de referências, pela demonstração atenta e rigorosa, academicamente ostensiva, do que significa fazer investigação em literatura portuguesa contemporânea (e, assim de repente, vêm-me à memória autores como Raul Brandão, Herberto Helder, Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira e Gonçalo M. Tavares, mas há ainda os seus artigos em publicações diversas sobre José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe, a poesia de Rosa Oliveira e o ensaísmo de Eduardo Prado Coelho). Um ato de leitura que, não obstante tudo o que acabei de elencar, se desenvolve como se escrevesse com o autor que se propõe pensar. Ler com o autor. Pensar com ele. E o ensaio existe por força dessa conjugação incrível: a meio de uma frase sobre as marginalidades da vida, é possível citar Derrida ou Deleuze sem que isso nos obrigue a franzir o sobrolho, a detetar algum resquício de sobranceria literata. Quando se lê “eu” num ensaio de Luís Mourão, não temos uma voz a reafirmar uma autoridade interpretativa, a dogmatizar o discurso. Pelo contrário: é alguém que conta a sua história de vida, e a primeira pessoa é fatalmente a emissária dessa história, do encontro dessa voz com os livros. O pessoal não é forçosamente intransmissível.
Nada como mostrar como isto acontece e nos enleva: “‘Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro’. Esta foi a primeira frase de Vergílio Ferreira que li, é o início de Aparição. O livro existia lá em casa, era um livro para mim antigo e sério, pude depois verificar que tinha sido editado um ano antes de eu nascer, estava na prateleira protegida pelo vidro, o que queria dizer que era importante e que provavelmente os meus quinze anos não o compreenderiam. Peguei no livro ao acaso, no intervalo das minhas leituras a partir da biblioteca da escola – era no tempo em que estava a ler todo o Júlio Dinis e todo o Jorge Amado – e ainda hoje me é difícil explicar o modo como esta frase apagou de uma só vez praticamente tudo o que até aí tinha lido. Aos quinze anos não se tem muito para recordar, mas vistas as coisas de um certo ângulo – e iria aprender esse ângulo no resto do romance – é perfeitamente possível dizer-se que aos quinze anos já se experimentou tudo o que de fundamental há para experimentar na vida: o amor, o ódio, a traição, o desejo de redenção, a melancolia, a náusea, o medo, a alegria, a angústia, o consentimento.”
O seu fascínio pela obra vergiliana também pode ser captado, muito rapidamente, da seguinte maneira. O autor de Para Sempre publicou um diário em nove volumes, genericamente intitulados Conta-Corrente, divididos em duas séries, num período que se estende de 1981 a 1944. Luís Mourão deu a mão ao último desses livros – Conta-Corrente 5 – e continuou o caminho dessa exploração: Conta-Corrente 6: ensaio sobre o diário de Vergílio Ferreira (1989).
Talvez esta contiguidade entre a leitura e a vida lhe permitisse parecer estar sempre calmo nas palestras e conferências. Quem o viu e ouviu estará certamente de acordo: a serenidade com que o Luís Mourão expunha as ideias, assim como a ternura e a elegância, são qualidades sem as quais o pensamento não tem luz suficiente para seduzir. E a mesma calma se desdobra e se explicita como um inegável trabalho de resistência – porque se já se dá como garantida a falibilidade das palavras, o logro de qualquer virtuosismo verbal para nomear o mundo com uma nitidez insuperável e definitiva (e podíamos ir à conhecida Carta de Lorde Chandos, 1902, de Hofmannsthal, reler o sentimento de crise no Húmus de Raul Brandão e emudecer, finalmente, com Suíte e Fúria de Rui Nunes, por exemplo), se é mais do que certo e sabido que da literatura não há salvação possível para o mundo (nem para este, nem para o outro) – o mais que se pode fazer é existir. E escrever é uma forma de vida, de dizer claro por meios turvos (ou ao contrário – o que importa é que os meios honrem os fins e que o real, ainda que enigmático, nos conceda ao menos a alegria da proximidade entre nós e as coisas, entre nós e as pessoas). Ou, como escreveu o Luís Mourão algures, “uma espécie de ética da insistência, que é a ética possível dos períodos a que falta precisamente uma legitimidade ética”. E é dessa mesma ética que se retira a humildade de reconhecer que vamos sempre a meio de tudo o que nos acontece – livros, História, memória, vida –, mas se estivermos dispostos a escutar, a estar atentos (e nunca é de mais repetir que a atenção é uma das expressões mais genuínas de generosidade), aprenderemos com o Luís, e como o Luís, essa “a possibilidade de nos darmos nascimento a partir do que já existe”.