Luís Mourão (1960-2019). Lições de clareza e compaixão

Luís Mourão (1960-2019). Lições de clareza e compaixão


Morreu, aos 59 anos, um dos mais argutos e originais ensaístas da literatura portuguesa. Mas se desaparece, além dos muitos textos, a sua influência prossegue com os tantos que inspirou e ensinou.


Nada é mais enganador no espaço literário do que essa superfície que tão cedo se oferece a um olhar sem peso, incapaz por isso de investigar mais fundo, e que mal se fixa, detendo uma imagem fútil, senão mesmo traiçoeira. O certo é que são muitas vezes as figuras inaparentes a esses olhares que estão na origem das invisíveis correntes que vão determinar um juízo profundo e atuante, a ponto de as regras do jogo serem revistas, e novos níveis alargarem o mapa e, com ele, o território. Mais dado ao recato do que muitos dos seus congéneres, Luís Mourão foi um exemplo claro dessa espécie de vigor e inteligência contagiante que dá o tom para que a geração que se segue possa afinar os instrumentos, antes de avançar numa interpretação mais vasta e consequente, num concerto ao vivo. Ele foi, por isso também, um exemplo “de quantas energias criativas – mais numerosas do que se possa crer – florescem sem ser plenamente reconhecidas na sua originalidade”.

É Claudio Magris quem, num dos ensaios recolhidos em Alfabetos (ed. Quetzal), deixa esta advertência: “Lendo as crónicas literárias, tem-se, em geral, a impressão de que a fama, duradoura ou efémera, encarrega-se de muitos, de todos, bem como de vários que não mereceriam nem mesmo a atenção de um dia. Entre as legiões dos obscuros cujos textos não chegam a sair da gaveta, existem, ao lado das inumeráveis veleidades patéticas ou arrogantes, alguns talentos notáveis e, talvez, algum génio. A irracionalidade e o acaso que governam cruelmente a vida, distribuindo, como de facto acontece, saúde e doença, prémios e castigos, triunfos e desastres, fazem sentir o seu arbítrio também na história literária”. 

A violenta e rápida doença que sobre Luís Mourão se abateu, e que o matou na passada quinta-feira, não lhe permitiu pôr em ordem os papéis nem organizar minimamente o que tinha como mais urgente. Ficaram alguns inéditos, até romances, como confirmou ao i Raquel Gonçalves, a amiga e namorada que o acompanhou no último e desesperado embate. E mesmo com o cheiro dilacerante da morte a cercá-lo, a sua urgência no fim levou-o a focar-se nas suas leituras sobre os outros, e particularmente num conjunto de ensaios sobre um dos autores a quem mais se dedicou, Gonçalo M. Tavares.

O tumor cerebral foi-lhe diagnosticado em março de 2018. Pouco mais de um ano antes morrera a mulher, Laura Ferreira dos Santos, fundadora do movimento Direito a Morrer com Dignidade. Luís acompanhou-a ao longo de mais de uma década, nessa via crúcis em que o sofrimento causado pelas metástases ósseas de um cancro da mama a obrigou a viver com dores terríveis e a empenhar uma luta admirável na defesa da despenalização da eutanásia.

Quando Luís Mourão começava a recompor-se, depois de um luto muito difícil, foi-lhe diagnosticado um gliobastoma multiforme no pior grau. Soube desde o início que tinha os dias contados mas, como contou ao i Raquel Gonçalves, não era a morte o que mais o preocupava, mas a hora em que o tumor lhe roubasse a capacidade de ler e escrever. Isto aconteceu duas semanas antes do fim.

De resto, num texto publicado há alguns anos, deixa bem claro como a morte sempre foi uma aliada nas suas tão lúcidas pesquisas: “Acredito no mundo o bastante para este presente e algum futuro, mas nunca para um desejo de eternidade. Não escolhi ser mortal, eu sei, mas tê-lo–ia escolhido se pudesse. Decididamente e para todo o sempre. É a minha forma de dizer a pequenina vida que se concede às unhas, e ser isso tão certo como a finitude o é para nós (…) A tristeza repartida é como a alegria que não nos sufoca pelo seu excesso. Um dia morrerei, e só isso torna tudo verdadeiro e suportável. Um dia morrerei, e isso é o princípio da compaixão. Ou da alegria”.

Avistando caudas e causas espantosas, sempre com uma firmeza serena, mesmo se o fazia da proa de um navio que naufraga, Luís Mourão era desses leitores que, com cada intervenção ou texto, faziam algo para nos desenfastiar dessa linha de escolhos que alinham os agentes da burrocracia que domina a nossa academia. Com um desassombro invulgaríssimo, lançava-se no “alto confronto” com obras capitais da literatura portuguesa, de autores como Raul Brandão, Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Agustina Bessa-Luís, Herberto Helder, Mafalda Ivo Cruz e o já referido Gonçalo M. Tavares.

As suas tão incitantes investidas são marcadas sempre por um relançar dos dados e um modo de mapear as suas dúvidas com uma estupenda clareza de quem nunca sai ou trai o jogo de sedução. Isso fez dele um admirável tunante, alguém que ensinava colocando cadeiras dentro do seu deslumbramento. O escritor e editor Rui Manuel Amaral contou ao i o prazer que sempre sentiu ao ouvi-lo falar dos livros e dos autores que lhe interessavam. “Como os grandes mestres, tinha desenvolvido uma espécie de exercício de encantamento para seduzir o auditório. Do fundo de um bolso, retirava a chave e apresentava-a com prazer ao público. Depois, com um gesto largo e lento abria o texto, e o milagre desenrolava-se diante dos nossos olhos, como se assistíssemos a um filme. O momento raro em que a literatura se solta das páginas e ganha cor e música, osso e músculo. E é tudo ficção. Quer dizer, é tudo verdade”.

Num texto publicado no seu blogue pessoal, Osvaldo Manuel Silvestre, que contou com a sua amizade e apoio em inúmeros projetos, incluindo na editora Angelus Novus, nota que “o Luís falava baixo, às vezes quase sussurrava, mesmo em intervenções públicas, e esse tom conversado e íntimo, que era a sua forma de estar presente, era também a melhor tradução da sua forma de pensar. Um modo de pensar que parecia progredir por meandros ou pequenas derivações anedóticas, mas que guardava sempre o segredo de um fio narrativo, como se o ensaio participasse nele ainda da ficção, a sereia de toda a sua vida”.

Era um ensaísta consciente do “líquido silêncio que envolve a vida e do furor da sua sombra cortante”, capaz de guiar um leitor nessas galerias subterrâneas a que o público geral normalmente não acede, e fazê-lo seguir como embalado por um caudal de relações que a sua esplêndida intuição punha a descoberto. As suas leituras procediam, assim, a uma indagação pungente, de tal modo que as suas teses não eram meros exercícios de correspondência lógica, mas a revelação de um sentido – “moral, sensual e doloroso” -, a ponto de nos convencer de que o mundo só se deixa ler à luz de uns poucos espíritos. “A literatura era para ele uma máquina de fazer mundo e é desse fazer, lento, progressivo, espesso, que ele trata em tudo o que escreveu ou disse, com a densidade que o definia”, adianta Manuel Silvestre.

Talvez ninguém como ele pudesse inverter agora as coisas a tal ponto que, em vez de desaparecer, fosse ele a dar-nos notícia da morte, fazer a crónica desse outro mundo, sem se perder na imensidão de um território que se move como num reflexo para sempre adiado. Isabel Cristina Rodrigues, professora da Universidade de Aveiro, disse ao i que “quando soube que estava doente, Luís Mourão descobriu-se grego, ou melhor, descobriu a palavra e o sentido para aquilo que nós no fundo já sabíamos: que a doença seria nele uma oportunidade para continuar a aprender e aprender-se, redefinindo-se”. Cristina Rodrigues adianta: “Não se desafia o destino nem se negoceia com ele, aceita-se o seu poder e o seu tempo e procuramos adaptar-nos às suas leis obscuras”.

Por sua vez, o ensaísta e colaborador deste jornal Diogo Martins, que absorveu claramente a sua influência, refere como o fascínio era adaptado a instrumento na sua leitura e, no confronto com a obra vergiliana, dá este exemplo: “O autor de Para Sempre publicou um diário em nove volumes, genericamente intitulados Conta-Corrente, divididos em duas séries, num período que se estende de 1981 a 1994. Luís Mourão deu a mão ao último desses livros – Conta-Corrente 5 – e continuou o caminho dessa exploração: Conta-Corrente 6: ensaio sobre o diário de Vergílio Ferreira (1989).

Diogo Martins acrescenta que “talvez esta contiguidade entre a leitura e a vida lhe permitisse parecer estar sempre calmo nas palestras e conferências. Quem o viu e ouviu estará certamente de acordo: a serenidade com que o Luís Mourão expunha as ideias, assim como a ternura e a elegância, são qualidades sem as quais o pensamento não tem luz suficiente para seduzir”.

Já Pedro Meneses, leitor de Português na Universidad de Los Andes (Bogotá, Colômbia), que trabalhou com Mourão no Instituto Politécnico de Viana do Castelo, refere que “é difícil voltar a conhecer uma pessoa assim, com uma paciência e uma lucidez no meio do desastre que é raríssima”. E adianta que “os ensaios são o reflexo disso, não era um saber enciclopédico, académico, nada disso”. “Era um conhecimento cerzido com a vida, assente numa capacidade de interpretação invulgar, que cruzava várias áreas de conhecimento”, sublinha Meneses. "O Luís era de uma geração de ensaístas rara, em que incluo o Osvaldo Silvestre, o Américo Lindeza Diogo e o Carlos Mendes de Sousa, cada um com as suas forças, e que têm que ser colocados ao nível dos grandes autores portugueses do século XX, na ficção e na poesia. Aliás, o diálogo dos grandes autores com esses críticos (penso em Herberto Helder, Vergílio Ferreira, António Franco Alexandre, Manuel António Pina, Engénio de Andrade) determinou inflexões e reflexões desses autores sobre as suas próprias obras", conclui.

“É bem verdade que o coração humano bombeia mais fábula do que sangue”, escreveu Mourão numa das últimas entradas do seu blogue, “Manchas”. Não merecia certamente que a sua biografia se encerrasse mudamente entre duas datas, num “Curriculum cadastro vizinhança” (Ruy Belo). Mas Pedro Meneses acedeu ao nosso pedido e gizou uma nota biográfica bastante completa. Ei-la:

Nasceu no Porto em 1960, licenciou-se em Filosófico-Humanístico da Faculdade de Filosofia de Braga (1983). Para Braga haveria de mudar-se ainda nos anos 80, tendo vivido nessa cidade com Laura Ferreira dos Santos. Obteve o grau de Mestre em Cultura e Literatura Portuguesas – época contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa (1990) com uma tese, em forma de diário, sobre os diários de Vergílio Ferreira intitulada Conta Corrente 6. Concluiu o seu Doutoramento em Estudos Portugueses, especialidade de Literatura Portuguesa do Séc. XX, pela Universidade Nova de Lisboa (1995) com uma tese sobre a paragem da história na ficção portuguesa contemporânea, estudo que começa em Raul Brandão e se estende até aos últimos romances de Vergílio Ferreira. Tornou-se professor Agregado em Estudos Portugueses, especialidade de Literatura Portuguesa do Século XX, pela Universidade Nova de Lisboa em 2004. Foi Professor Coordenador Principal na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo durante vários anos, tendo sido Presidente do Conselho Técnico-Científico do referido Instituto. Na ESE-IPVC, ensinou Ficção de Língua Portuguesa Moderna e Contemporânea desde os anos 80 tendo sido também investigador do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho (Braga). Coligiu uma parte dos seus ensaios, originariamente publicados em várias revistas científicas como a Colóquio/Letras, a Diacrítica ou a Brotéria nos volumes Vergílio Ferreira: excesso, escassez, resto (2001) e Sei que já não, e todavia ainda (2004) publicados pela Angelus Novus, editora de que foi um dos fundadores com Osvaldo Silvestre e Américo Lindeza Diogo. O seu trabalho ensaístico das últimas décadas permanece disperso.

Um percurso crítico extraordinário, centrado na ficção portuguesa contemporânea, com ensaios e comunicações (quem fará justiça ao que eram as comunicações de Luís Mourão?, a calma com que pesava o fio da sua argumentação, tendo sido previamente com rigor científico e asceticamente reduzido ao essencial, que depois ia sendo desenrolado enquanto esmiuçava cada passo, segundo um pathos metafísico e irónico – vergiliano? – que o Luís inolvidavelmente punha em certas palavras e exatos silêncios?) em torno de vários autores, desde Raul Brandão, Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Agustina Bessa-Luís, Herberto Helder, Mafalda Ivo Cruz, Gonçalo M. Tavares. Para além disso, ainda escreveu textos de índole jazzística, em particular na Zentralpark, e ensaios que mobilizavam toda a sua cultura cinematográfica (escreveu sobre David Lynch, por exemplo) mas sobretudo a musical, não tivesse sido o Luís Mourão um melómano. As exceções à regra de só escrever sobre ficção de língua portuguesa foram as incursões pela poesia de Florbela Espanca e Ruy Belo, em particular pela do último, em que se acentuava aquele modo de dizer não ao que é grande, de desejar ser um simples gato ao sol, enquanto vem um verão e depois a verdadeira estação, a carta e o horário, ficando tanta coisa por viver e dizer na fantasia de vidas cheias. Mas essas vidas cheias fariam desaprender o finito e o dever de responder ao outro, ao que é frágil, ao que se nos apresenta na sua deficiência, no seu abandono, largado pela mãe, pelo amor do absoluto entrado nas brumas do mar.

A ética tem a oportunidade de se manifestar diante da fragilidade, escreveu Gonçalo M. Tavares. Saint-Exupéry afirmou que somos responsáveis por aqueles que cativámos. O Luís exerceu exemplarmente a ética diante de quem se mostrava frágil e esteve disponível para os muitos que cativou. E estou longe de ser o único a afirmá-lo com conhecimento de causa. Perto do Luís, era difícil que a maldade alastrasse, pois a sua boa ação importava menos pela razão que a pudesse justificar, mas pelo espaço de construção e ligação que efetivamente permitia. A afabilidade era uma das suas virtudes (um anacronismo num mundo de profissionais que louva acima de tudo a eficiência e vê na pessoa afável o lento, deslocado).

Uma das grandes felicidades da minha vida foi ter sido seu interlocutor. Continuará a fazer-nos falta.

 


DOIS TESTEMUNHOS

Gonçalo M. Tavares, escritor

Luís Mourão tem um percurso académico e intelectual muito forte e escreveu de uma forma invulgarmente lúcida sobre alguns dos autores que seguia atentamente.

Sinto-me muito honrado por ser um deles e por ter sido acompanhado e seguido, crítica e intelectualmente, pelo Luís Mourão, quase desde o início.

Outras pessoas estarão bem mais habilitadas para falar do seu notável percurso académico e intelectual. Neste depoimento, tentarei falar das vezes em que nos cruzámos, e em que situações.

Ele foi, por exemplo, uma das pessoas que leu o Aprender a Rezar na Era da Técnica antes de ser editado e também o Viagem à Índia. Conversámos sobre esses livros antes de eles existirem cá fora.

Nas primeiras páginas de Aprender a Rezar na Era da Técnica, fiz questão de agradecer expressamente a sua generosidade.

Luís Mourão foi também autor de alguns dos ensaios mais esclarecedores e profundos sobre a minha obra. Na retaguarda académica, com tempo, ele escreveu e publicou inúmeros textos sobre O Reino, por exemplo, que são de uma argúcia notável. 

Só muito tarde soube da doença do Luís Mourão.

Já depois de saber da doença estive com ele por diversas vezes. O Luís esteve presente, para minha surpresa, recentemente, em diferentes cidades, nas apresentações de uma performance que fiz, e no final falámos sempre de uma maneira tão simples e forte que pensar nisso me comove.

A última vez que falámos foi na biblioteca de Braga, a propósito de um curso, há cerca de um mês, e ele disse-me, com entusiasmo, que estava a reunir e organizar os vários textos que tinha escrito sobre a minha obra para editar em livro.

Quando nos despedimos nesse dia, quando o Luís estava já de saída com o apoio carinhoso e delicado de uma amiga querida, acelerei um bocado o passo, acelerei muito o passo, para me despedir dele. Felizmente consegui despedir-me e agradecer, naquele momento, toda a atenção, toda a generosidade que ele estava, com a sua presença, a oferecer-me, é essa a palavra.

A notícia da morte dele entristeceu-me muito e é difícil falar sobre isso ainda. Era um homem tranquilo, muito inteligente e ponderado. 

Sou um animal de memória firme em relação às pessoas generosas que me deram e dão muita energia intelectual para continuar. Uns que já desapareceram – Eduardo Prado Coelho, José Saramago, Vasco Graça Moura, etc.; outros, muitos, que felizmente ainda estão vivos.

O Luís Mourão, com os seus textos e não só, ofereceu-me sempre uma energia forte para continuar. 

O Luís deu-me muito mais do que eu lhe dei. Estou-lhe muito grato. É meu dever tentar retribuir.

 


Isabel Cristina Mateus
Professora da Universidade do Minho

Para além do ensaísta de fulgor, havia a serenidade do homem e do académico, o humor ácido ou enternecido, a acutilância do olhar, a fina ironia. E havia sobretudo o amigo. Em determinado momento das nossas vidas demos por nós a amparar-nos um ao outro, num desses improvisos com que o palco da vida nos depara. Em 2016, o Luís sofreu uma perda que o deixou sem chão, tal como eu sofrera alguns anos antes. Em julho desse ano, escrevia eu um post melancólico sobre a angústia das férias onde dava conta da “solidão que vem com o verão”, do desamparo que há em fazer malas, da paisagem que sempre nos devolve um lugar de ausência e do meu desejo impossível “de ficar, por um instante, morando nos olhos de alguém”. O Luís leu e enviou-me uma mensagem particular que aqui transcrevo porque, estou certa, ele me autoriza:  

“Era para já te ter falado antes, e depois na quinta fiquei siderado ao ler-te. Tenho tido umas saídas a Paris e quando estava a arrumar a mala tive uma intuição nebulosa próxima do teu pensamento, mas deixei de lado, arrumei apenas a mala e despachei-me para outros afazeres. Não marquei nada para agosto e ao ler-te percebi exatamente porquê.

São tão exatas as tuas palavras, Isabel! E tenho constatado que quanto mais exatos conseguimos ser nestas coisas, mais nos conseguimos manter na realidade. Às vezes, as pessoas pensam que nos estamos a queixar ou queremos colo, e embora ambas as coisas sejam legítimas, estamos apenas a ser exatos, a pisar no real, contornando o pântano.

Ainda comecei a ler algumas coisas sobre luto, mas desisti. Não é que estivessem erradas, apenas curtas. E esgotado o trivial, reconheci-me pouco nas emoções e reações. Somos a nossa história, e temos de continuar a contá-la nos seus próprios termos. Dizer que alguém nos falta poderá ser universalmente partilhável, e não subestimo esse mínimo entendimento comum. Mas dizer que nos falta morar nos olhos de alguém, sendo em parte o mesmo, já é bastante diferente. Enfim, tu sabes o que quero dizer”.

Pisar no real com exatidão, contornar o pântano, continuar a contar a nossa própria história era uma determinação comum. A mensagem continuava, num ritmo improvisado de jazz de que ambos gostávamos, entre sons de Herbie Hancock e os dois pianos do Chick Corea que eu escutara ao vivo por esses dias. Sons entrecortados pela dor e por uma imensa urgência de vida: “Depois de se ter passado pela necessidade de adrenalina do estado de exceção, a realidade é uma bênção de tranquilidade tanto quanto uma terrível deceção”, dizia-me, ganhando voz por entre os sons. E em jeito de provocação, tira-nos esta selfie autoirónica: “Quase fazemos um informal grupo de autoajuda…” Rimos da imagem caricatural, esconjurando ambos qualquer forma de autocomiseração. Ao longo destes anos, o grupo informal de autoajuda deixaria marcas indeléveis. Trocámos sons de jazz, imagens de filmes, excertos de livros, uma partilha ditada pela vontade firme de pisar o real. De sermos exatos para nos mantermos à tona da realidade. À tona de nós próprios.

O Luís encontraria pouco depois uns olhos onde morar.