A Coreia do Norte é dos países mais presentes nos noticiários e talvez até no nosso imaginário comum. Mas, ao mesmo tempo, é dos países mais isolados e desconhecidos. Como é viver na Coreia do Norte?
Viver na Coreia do Norte é viver num país absolutamente político. Tudo é político. Quando vais trabalhar de manhã, a primeira coisa que fazes é ter uma reunião política. Sobre o partido, sobre o líder, sobre o que podes fazer para ajudar o país. No final do dia tens outra reunião política, que pode durar até à noite. E depois podes ter uma reunião do comité local, ou de bairro. No fim de semana podes estar em equipas de voluntários que fazem diversos trabalhos de limpeza, por toda a cidade, e é tudo político. Na escola, tudo é político, desde o jardim-de-infância. A universidade também, claro, é massivamente política. A televisão, a rádio, é tudo patriótico, revolucionário, sobre a liderança. Não há escolha. Não há publicidade em Pyongyang, exceto slogans políticos, como imagens dos líderes. Nesse sentido, o mais próximo seria a China, durante a revolução cultural, mas sem o caos desse período. É como imaginaríamos a vida no 1984 do George Orwell. É a melhor aproximação.
Sei que na pesquisa para o seu livro visitou o país várias vezes. Como conseguiu um acesso tão completo?
Na altura eu estava a viver e trabalhar na China. Não estava assim tão longe da Coreia do Norte. Claro que visitei o país como turista – qualquer ocidental pode fazê-lo – mas também fui em viagens de investidores. Ser um investidor, ou algo do género, como gestor de fundos de risco, qualquer pessoa que leve dinheiro, permite-nos ter respostas que os norte-coreanos nem sequer ponderariam em dar a um jornalista. Se estás a oferecer dinheiro, eles têm de responder, porque são sensatos o suficiente para perceber que ninguém lhes vai entregar dinheiro sem haver as diligências adequadas, é uma operação bancária. Se queres ver uma fábrica, perceber quão más as coisas estão na fábrica, quão poucas encomendas têm, quão fraca é a qualidade dos produtos que fazem, quão ineficiente é a produção, eles têm de te mostrar. Tens de saber se eles fazem dinheiro, se sabem importar e exportar, quais são os mercados deles. Se perguntasse isso como jornalista – se me deixassem sequer entrar no país – nunca responderiam. É uma maneira muito inteligente de entrar no país. Se disseres ‘só negociamos se nos deixares ver os portos, as estradas, temos de saber como funciona a logística’, eles têm de ser mais abertos.
O que o impressionou mais?
Bem, tentar falar de negócios sérios com os norte-coreanos foi sempre muito difícil. Eles não fazem nenhuma ideia que no resto do mundo se transportarmos coisas temos alfândegas, e que o fazemos através da internet, já não se usam pedaços de papel e coisas do género. Não conhecem nada do sistema bancário internacional. Não sabem que eu posso pagar-lhes em dólares de Hong Kong, e que esses dólares podem ser convertidos em euros, que se pode jogar com a moeda… Não fazem ideia. Nem sobre a lei internacional, ou as leis de outros países. É chocante. O encorajador é que há pessoas que querem tentar fazer alguma coisa sobre o assunto. O que é ligeiramente preocupante é que nunca conseguimos algo feito seriamente, sabemos que fazem muitas coisas ilegalmente. Há muito contrabando, tráfico de metanfetaminas e outras coisas. Tendo visto o colapso da União Soviética, do leste da Europa, as mudanças em Cuba, e particularmente o sucesso da China… sente-se que existe essa espécie de empreendedorismo latente, clandestino, que diz ‘se me deixasses, se pudesse simplesmente ter uma hipótese, queria começar a fazer negócio’. Falo de negócio num nível muito básico. ‘Eu faço algo para ti e tu dás-me algum dinheiro, podemos até fazer uma troca direta’. Quer dizer, eles estão dispostos a produzir coisas por comida, o país precisa de comida. Mas eles estão presos neste sistema marxista-leninista, particularmente na agricultura. O que significa que nunca produzem comida suficiente para se alimentarem a eles mesmos. E não conseguem produzir nenhuns bens para lá de isqueiros de plástico, ou canetas, nada que o resto do mundo queira. Não conseguem ir para lá do valor de troca e dar lucro ao país.
Menciona no seu livro que um dos aspetos mais particulares da Coreia do Norte é a ideologia do regime, o ‘juche’, ‘que coloca as forças armadas acima da classe trabalhadora’, nas suas próprias palavras. Isso não é uma contradição direta com o marxismo-leninismo, que pretende colocar a classe trabalhadora na liderança da sociedade?
Sim. Claro que Kim il-Sung pegou no marxismo-leninismo – a versão de Estaline do marxismo-leninismo – e aplicou-o ao seu país. É assim que a agricultura e a economia são geridas. Depois, ele decidiu que para ficar no poder tinha de ter o apoio do exército. Como tal, estruturou as coisas em proletários, camponeses e intelectuais, e acima deles os militares. Agora isso é menos uma política oficial, dado que o regime conseguiu desenvolver armas nucleares, e a sua dependência dos militares é discutivelmente menor. E também têm a guerra eletrónica, que veem como uma enorme ferramenta, mas é algo que não entra na esfera dos militares convencionais. Portanto, eles adaptaram o marxismo-leninismo através do ‘juche’. Conhecendo-se a Coreia do Norte, é uma piada. Significa “autossuficiência”, e eles são completamente dependentes das Nações Unidas e da ajuda alimentar. Mas também incorporaram diversos elementos tradicionais do pensamento coreano, particularmente o confucionismo. Essa noção de hierarquia, do pai para o filho, da esposa ao marido, percebe-se como isto sobe até ao grande líder. Claro que tecnicamente Kim Jong-un não é o líder do país. O Kim il-Sung, mesmo estando morto, continua a ser o Presidente eterno. Esta tradição confuciana é incorporada na Coreia do Norte do Kim Jon-un ao Kim Jong-il, até ao Kim il-Sung. É assim que conseguem explicar esta ideia de monarquia comunista, a única que alguma vez existiu.
São frequentes as imagens de demonstrações maciças desse culto de personalidade. Como está presente no quotidiano dos norte-coreanos?
Está fisicamente presente. Cada escola tem uma imagem dos líderes, de momento apenas Kim il-Sung e Kim Jong-il, mas brevemente também haverá de Kim Jong-un. Quando entras num comboio, no metro, há imagens na carruagem. Há estátuas, posters, estão em todo o lado. A capa dos jornais é sempre ‘o que é que Kim Jong-un fez hoje’, qual é o pensamento político. E este culto de personalidade ao Pai da Nação, ao Protetor da Nação, sob Kim Jong-un ficou muito, muito ligado às armas nucleares. Ao ‘eu consigo fisicamente defender este país’, ‘eu tenho armas nucleares, ninguém nos consegue atacar’. A ideia é: ‘A família Kim criou este país, deu-to, e agora consegue protegê-lo. E até o Presidente dos Estados Unidos, o nosso pior inimigo, teve de vir até nós’. É assim que venderam o assunto das tensões nucleares e das cimeiras com [Donald] Trump. E de facto é verdade.
Hoje em dia, as condições dos militares, pelo menos dos soldados rasos e afins, são muito superiores às do resto das pessoas?
Não se esqueça que a Coreia do Norte tem 22 milhões de pessoas e um exército com um milhão. É imenso. Isso significa que todas as famílias do país têm um laço com o exército. Os tipos comuns, que são simplesmente camponeses, vivem em condições muito más. Um soldado que foi baleado a tentar passar a fronteira, quando os sul-coreanos o encontraram, aperceberam-se de que estava cheio de bichos e doenças. Vi alguns com os meus próprios olhos, têm um cheiro terrível, dentes podres. Não parecem um exército. São pequenos e não se barbeiam. Imagina um tipo no exército britânico que não se barbeie? Mas o exército ganha importância por serem as únicas pessoas que têm camiões no país, e que podem movimentar bens. Quando as ajudas chegam, ou as sanções são levantadas, são quem trata dos transportes. Não há nenhuma empresa de logística. Em público, os militares são os defensores da nação. Na realidade, são a logística da economia nacional.
No seu livro conta que os únicos locais sem cortes de energia provocados pelas sanções são algumas estátuas e gabinetes de oficiais…
Sim, sim. Mas temos tido alguns relatos bastante confiáveis, em particular da embaixada do Reino Unido, de que até no distrito das embaixadas – onde muitos dos líderes mais importantes vivem – tem havido cortes de eletricidade. É assim que vemos que as sanções da ONU estão mesmo a afetá-los.
E as pessoas comuns, que vivem constantemente com falhas no seu abastecimento elétrico, como subsistem?
Esses cortes são tão habituais que foram institucionalizados. Em ruas grandes, com prédios de um lado e do outro, em certas altura do dia estás no meio da rua e vês que a energia foi cortada nos prédios de um lado e do outro não. E vês as crianças a correr pela rua, porque ainda há energia do outro lado. Todas as famílias que vivem ali têm uma relação com as do lado, e quando ficam sem eletricidade, toda gente continua a cozinhar ou a fazer os trabalhos de casa em casa dos vizinhos. E quando os outros ficam sem luz, toda a gente vai lá a casa. Mas sabemos que é um grande problema para quem vive nos andares mais altos, sem elevadores. É um grande problema, até em Pyongyang quase não há autocarros, porque não há combustível suficiente. As pessoas caminham longas distâncias para ir trabalhar. E é só um desperdício, como tento explicar no livro. Se as pessoas caminham tanto para trabalhar, se têm muito frio, ou muito calor, se estão tão cansadas, quando chegam lá já não trabalham nada. Particularmente nas zonas rurais, onde têm de caminhar ainda mais para chegar a sítios onde não há maquinaria, não há gado, fertilizantes, é quase medieval. Quando estive no campo, o que achei mais fascinante, é que quando vais às quintas coletivas, não está a crescer quase nada lá. Se puderem, todas as pessoas estão a descansar ou a dormir. Mas vai-se às traseiras das casas dos agricultores, e eles têm as suas hortas, com todo o tipo de vegetais, bem cuidados. As pessoas estão a poupar as suas energias para trabalhar no seu bocadinho de terra, porque sabem que fora dali o regime vai simplesmente tirar-lhes o que produzem.
Há pouco mencionou o contrabando e o tráfico de drogas no país. Quão importantes são estas atividades para a subsistência norte-coreana?
Sempre foram muito importantes, desde a falsificação de dinheiro ao contrabando de ginseng, e várias outras coisas. Expandiram-se muito na internet. Se for à internet para comprar algo ilegal, como comprimidos para emagrecer muito fortes, provavelmente será vendido por norte-coreanos. Claro que podem danificar-lhe o fígado, mas o dinheiro é transferido para eles. Também eram muito grandes no mercado do viagra e do fabrico de metafetaminas, particularmente para vender na Austrália. Eles movem todos esses produtos, mas as sanções da ONU tornaram-no muito difícil. Particularmente quando a China alinhou com as sanções. Além de deixar de lhes vender o petróleo – o que resultou em cortes de eletricidade – também encerrou as suas contas bancárias norte-coreanas no estrangeiro. A maioria das quais estava na China ou em sítios que a China controla, como Macau e Hong Kong. A capacidade da elite de aceitar dinheiro de alguém e pô-lo fora do país diminui, dificultando também que movam dinheiro de um lado para o outro nestas transações ilegais. Mesmo que faças parte do crime organizado não vais gostar de fazer uma transferência bancária para Pyongyang, não dá para controlar. Mas talvez faças se a transferência for para Macau, ou qualquer outro sítio que seja um pouco um faroeste financeiro. É engraçado estar em Portugal, porque Kim Jong-nam, o meio-irmão de Kim Jong-un que foi assassinado, viveu por uns tempos em Macau. E era lá que costumávamos reunir com norte-coreanos fora do país, em negócios oficiais. A certa altura a Air Koryo, a operadora nacional norte-coreana, só tinha voos para Pequim e Macau. Mas nunca conseguias marcar um voo para Macau, era só uma rota de contrabando. Tudo o que queriam, para manter a elite contente, relógios Rolex, etc., era tudo comprado em Macau e levado para Pyongyang.
Mas até dentro do próprio país a criminalidade está a subir, segundo o seu livro, com o crescimento dos resquícios dos yakuza [máfia japonesa]. Como é possível numa sociedade tão restrita?
Isso foi algo que me espantou também. Mas também havia gangues criminosos até na Rússia de Estaline e na China de Mao. Estes gangues sempre existiram, de certo modo, e ouvimos sempre histórias de carteiristas, extorsão, coisas dessas… Mas desde que o Kim Jong-un chegou ao poder, particularmente desde as sanções da ONU, as coisas ficaram muito difíceis. Uma das coisas que os desertores nos contam – que acho muito interessante – é que o nível de corrupção entre a elite política aumentou. Cada vez mais pessoas nos contam que a polícia quer subornos, ou que é preciso pagar a alguém para ter uma carta de condução, ou autorização para fazer negócio. Ou que caso queiras uma casa melhor podes subornar alguém do departamento da habitação. Essas coisas não costumavam acontecer. Os norte-coreanos tinham a ideia ‘estamos cercados por imperialistas, por isso é que as coisas estão mal, mas estamos nisto juntos’. Um espírito de tempo de guerra, uma coisa à Churchill. Agora existe uma elite cada vez mais parasítica, que funciona como uma máfia. Se pensar no motivo por que não houve uma revolução contra a dinastia Kim, é porque não havia nada a que as pessoas se pudessem agarrar. Não havia nenhum sindicato clandestino como na Polónia, nenhuma igreja organizada, como Igreja católica no leste da Europa, ou o Islão na Ásia Central. Nem um movimento de exilados dissentes, como na Rússia. Mas com a classe política a parasitar os trabalhadores, eles percebem: ‘Não, não estamos nisto juntos. Vocês estão a enriquecer graças a nós’. Para mim é primeira coisa que pode juntar as pessoas para lutarem. O problema é que a primeira pessoa a tentar fazer algo vai levar um tiro muito rápido. Lembro-me quando o Ceascescu apareceu numa varanda, e toda a gente estava aplaudir. E de repente alguém começou a vaiar, e os aplausos passaram a apupos. Dois dias depois ele foi fuzilado, e foi o fim. Esse tipo de viragens assusta o regime.
Poucos de nós irão conhecer um norte-coreano ao longo da nossa vida, imagino que tenha conversado com vários. Como é a mentalidade? De desertores ou de lealistas.
Esse foi um dos motivos pelos quais quis escrever o livro. Creio que uma das razões porque o Tony Blair e o George W. Bush foram capazes de convencer as pessoas a apoiar a guerra no Iraque foi porque nenhum de nós conhecia os iraquianos. A maioria das pessoas não tinha amigos iraquianos, vizinhos iraquianos, não foi à escola com eles. Eram como aliens para nós. Hoje, os norte-coreanos ainda são mais. São-nos mostrados como robots, que seguem o líder, só os vemos ao lado de mísseis, tanques, o que seja. Sinto que os devíamos conhecer melhor. É claro que os norte-coreanos vivem num mundo bizarro, de onde é difícil sair, são pobres, com baixa educação no geral. Mas por outro lado são como todos nós, trabalham para sustentar as suas famílias, têm orgulho dos seus filhos, gostam de beber uma cerveja, contar piadas. Não têm muito, mas gostam de relaxar e ver televisão, comer bem, quando conseguem, ir ao parque num dia de sol, fazer piqueniques e dançar… Humanizar as pessoas é muito importante. É difícil ter um inimigo sobre o qual podes simplesmente largar bombas se sentires que o conheces.
No seu livro menciona a notícia que Kim Jong-un teria dado o seu tio de comer por cães, algo que se provou ser falso. Quanto do que ouvimos sobre a Coreia do Norte é falso?
Bem, ele de facto acabou por executar o seu tio. Os norte-coreanos usam frequentemente histórias ou alegorias, por isso dizerem que ele foi dado de comer aos cães selvagens é como dizer que ele não valia nada. Mas o tio de Kim Jong-un foi morto, algo que enviou uma mensagem ao exército, de que ele estava pronto a matar, para se mostrar o tipo duro que consegue governar o país. É por isso que por vezes se descreve a Coreia do Norte como “o Estado dos Sopranos”. É assim que fazem as coisas. Kim Jong-un já executou cerca de 75 altos cargos do exército e do partido desde que chegou ao poder, incluindo o tio. A família Kim é muito grande, há muitos primos e tios. É verdade que ele era muito novo quando começou a governar, e muitas pessoas questionaram se ele era duro o suficiente. Mas creio que ele já provou o que tinha a provar, primeiro com as purgas, depois com a crise nuclear, com as cimeiras com o Trump… Nenhum observador da Coreia do Norte que eu conheço teria previsto que ele seria tão forte. Deve ser um excelente jogador de póquer, porque jogou bem todas as suas mãos.
Considera que muita desta desinformação também parte da Coreia do Sul ou dos Estados Unidos?
Bem, os sul-coreanos dizem muita coisa, e como é óbvio eles estão o mais atentos que podem. Mas não podes acreditar em tudo o que dizem, eles têm a sua própria agenda no que toca à Coreia do Norte. Já os EUA não sabem nem metade do que pensam saber. Claro que têm uma grande capacidade tecnológica, com satélites e afins, por isso são muito bons a localizar mísseis e bases militares. Mas têm zero conhecimento do que se passa nas ruas de Pyongyang. Os sul-corenos são melhores para isso, os chineses são úteis, e sabem um bom bocado, mas ninguém tem todas as respostas.
Como vê as recentes negociações entre Trump e Kim Jong Un?
É muito fácil simplesmente dizer que foi um desastre para Trump e um grande sucesso para Kim. Por um lado é verdade, o Trump não ganhou nada, e o Kim tudo, se assumirmos que ele queria criar um cenário de equivalência entre um Presidente dos EUA e um ditador norte-coreano. Isso nunca deveria ter acontecido. E tenho a certeza de que toda a gente em Washington disse a Trump: ‘Não faças isso, não faças isso’. Mas, por outro lado, o Kim tem um problema, porque continua a precisar do fim das sanções, e o regresso da entrada de ajuda alimentar, ou as pessoas vão passar fome. Ok, ele pode deixar as pessoas passar fome. Mas se ficar tão mau que o exército passa fome, ou os dirigentes do partido, ele pode ficar em maus lençóis. Se houver uma crise de refugiados, com as pessoas a fugir para a China, a China pode decidir que é tempo de ele sair. Alguém vai pegar num telemóvel Huwawei algures numa caserna do exército norte-coreano e dizer que o tempo de Kim chegou ao fim. Não que o país deixasse de ser uma ditadura nesse cenário. Seria exatamente a mesma coisa no dia seguinte, mas liderado por um general de que nunca ouvimos falar e com mais envolvimento chinês. É por isso que penso que haverá uma terceira cimeira – tanto Kim como Trump precisam de algo.
Numa nota mais pessoal, como é que se interessou tanto pela Coreia do Norte?
Bem, eu sou um sinólogo, vivi na China, e escrevi e pensei sobre o país. Os meus estudos foram de chinês e algum coreano. E quando se chega à China, enquanto europeu, é fascinante. Mas há todos estes europeus e americanos que também estudaram a China, não é assim tão único. Quando se chega a Pequim e a Xangai, a ideia é: “Qual é o próximo sítio a ir?”. Nos anos 90 as opções eram a Mongólia, que é fascinante, ou a Coreia do Norte, com esse tipo muito particular de comunismo maluco. Cheguei a Pequim quando eles estavam a começar a querer ser capitalistas, e descobri que ainda havia esse grupo na Coreia do Norte de comunistas da linha dura. E é por isso que os chineses agora vão lá de férias, com excursões e tudo. Para eles, esse tipo de comunismo é história, tens de ter pelo menos trinta anos para te lembrares disso em criança. Os chineses quando vão lá ficam pasmados, pensam, ‘vocês são doidos’. Não há mais nenhum sítio assim no planeta.
No seu livro descreve os observadores da Pyongyang como “uma raça estranha, tão repugnada como fascinada com este país bizarro”. Vê-se a si mesmo a essa luz?
Sim, sim, creio que quem quer que estude a Coreia do Norte é um bocado louco. Na maior parte são europeus, um par de australiano, alguns russos, ou até os chineses, todos são um pouco loucos. É um sítio terrível para nos especializarmos, não se consegue informação nenhuma, ninguém quer falar contigo, não te dão documentos, qual é o objetivo? Mas ao mesmo tempo é um puzzle impossível de resolver. Para as pessoas que vão lá é de certo modo fascinante, nem sabemos se o que vemos é real. Quando vais dar uma volta com os guias, e eles mostram-te um restaurante, e apercebes-te que não é um restaurante, é só uma fachada. Uma vez levaram-me a um sítio e disseram: ‘isto é um bar, as pessoas estão a beber um copo’. E num dia quente, com um calor insuportável, as pessoas estavam no bar, com fato preto e gravata, com todo o ar de funcionários do partido. E eu disse: ‘Porque não paramos para beber uma cerveja?’. E os guias logo: ‘Não, não, não’. Questionei-me logo se era mesmo um bar, e passei lá outra vez, e só havia a parte da frente de uma casa. Se eles estão dispostos a criar um bar de propósito para nós, quatro tipos de um banco inglês, que poderiam ou não investir cerca de 200 mil euros – que não é nada – imagino o que será para quem investir a sério. É de loucos. Mas ao mesmo tempo há quase uma certa beleza na coisa, na aparência e na sensação das estátuas e das obras de arte. Eles começam a convencer-te de que aquilo é mesmo bom, e tens de lembrar-te sempre de que há ali cerca 400 mil pessoas em gulags. Estás numa espécie de conto de fadas socialista, é um bocado estranho.
Um dos principais temas do seu livro é a paranoia que permeia todos os aspetos da vida quotidiana na Coreia do Norte. Consegue ver a raiz da paranoia com a ameaça imperialista na guerra da Coreia, quando os bombardeamentos dos EUA arrasaram 75% de Pyongyang e mataram três milhões de pessoas?
Obviamente. É uma paranoia que não é totalmente inventada. Basta ver fotos de Pyongyang em 1955. Os americanos arrasaram a cidade. Um dos argumentos mais convincentes que os norte-coreanos usam é o facto do general Curtis LeMay, o líder do exército na guerra, ter pedido autorização ao Presidente Eisenhower para usar armas nucleares, mas Eisenhower disse que não. Apenas nove anos antes já as tinham usado contra o Japão. Por é que os norte-coreanos dizem que querem uma arma nuclear? Porque o país que tem 35 mil soldados no outro lado da península, e mais no Japão, e a sétima armada a controlar o Pacífico, usou de facto armas nucleares e foi o único a fazê-lo na história. E quis usar armas nucleares contra a Coreia do Norte. E esse não deixa de ser um argumento convincente, particularmente para um europeu que não alinhe com tudo o que fizeram os EUA, desde a Segunda Guerra Mundial. Basta olhar para o Iraque, Líbia… Ou seja, eu consigo perceber, mas como é óbvio o regime de Pyongyang está a usar isso para manter o controlo do seu povo. E essa paranoia que semeiam obriga os norte-coreanos a desconfiarem dos inimigos externos, mas também de todas as outras pessoas. Se fôssemos norte-coreanos e colegas de trabalho, amigos até, nunca poderia chegar ao ponto em que te dizia: ‘ Sabes que mais? Temos de nos livrar deste Governo. É horrível’. Nunca poderia confiar em ti.
Refere no seu livro que os norte-coreanos usam um discurso privado para a família e um discurso político para o resto da sociedade.
Há muito calão e palavras de código que são usadas. Ouvimos relatos de desertores segundo os quais que há piadas políticas às escondidas, e que as pessoas se revoltam com uma série de coisas. Uma coisa interessante – e que também acontece na China – é que as pessoas ficam muito zangadas, por vezes, com funcionários locais que são corruptos, ou não estão a fazer um bom trabalho. E o que as pessoas dizem é: ‘Aquele funcionário é corrupto e não faz o seu trabalho. O líder tem de ficar a saber’. A ideia que fica é que se o líder soubesse, não permitiria tal coisa. A crítica ao quadro do partido torna-se patriótica, o grande problema é que ele está a trair o líder. É uma tática inteligente para se protegerem e sobreviverem.
Se algum cidadão português quiser visitar este país tão misterioso é possível? Existe algum perigo particular?
Bem não há nenhum perigo real, qualquer pessoa é livre de o fazer. O teu Governo, como qualquer outro Governo europeu, não apresenta nenhuma razão para não o fazer. As pessoas lembram-se frequentemente do caso Otto Warmbier [que foi preso e libertado em coma, acabando por falecer], mas não é claro o que aconteceu de facto. Ele foi à Coreia do Norte e arrancou uma bandeira e uma faixa política. Eu sugeriria a qualquer pessoa que visite o país que evite causar problemas, e não se pode ficar furioso se a polícia aparecer. O que aconteceu foi infeliz, e pode trazer complicações, mas é o único exemplo semelhante que me recordo. Houve também o caso de uma mulher francesa que tentou oferecer bíblias. Isso nunca se faz. É algo que costuma acontecer com cristãos da Coreia do Sul. A Coreia do Norte está muito atenta a cristãos que queiram distribuir bíblias. Mas se for lá só visitar, não há nenhum motivo para não ir.
Quão mal vista é a religião na Coreia do Norte?
Totalmente. Kim Jong Un é a religião, o partido é a religião, o eterno Presidente. Toda a alegoria à volta disso substitui a religião. Claro que eles compreendem o poder da religião, do mesmo modo que os chineses. Na Coreia do Sul, além dos grupos mais tresloucados, há muitas igrejas pentecostais, modernas, à americana, com cristãos de direita. Claro que numa sociedade aberta como a Coreia do Sul, isso não levanta problemas necessariamente, porque têm um Governo democrático. Mas podia levantar na Coreia do Norte e eles estão muito conscientes disso. E são completamente contra.