O filósofo muçulmano que viu o mesmo que Darwin, mil anos antes

O filósofo muçulmano que viu o mesmo que Darwin, mil anos antes


A lupa da História tem tendência a fazer de formigas gigantes. Antes de Darwin houve outros cientistas, filósofos e poetas que toparam a seleção natural, e há um que ganha cada vez mais destaque: Al-Jahiz.


Ao desbravar o terreno, a ciência já aprendeu a baixar a crina quando bate de frente com as convicções a que os homens se agarram, esse manto de retalhos de superstições e preconceitos. Obrigada a pedir licença, a pisar com o maior dos cuidados, a ciência é tantas vezes forçada a suster a respiração ou a levar à frente um canário nas épocas piores, a ver se este cai para o lado quando o obscurantismo sai a fazer as rondas.

À espera que o ambiente desanuviasse, Charles Darwin viu passarem-se duas décadas, e se finalmente se decidiu a divulgar as suas descobertas no que toca à evolução das espécies foi porque tinha já um jovem naturalista, não menos brilhante, a morder-lhes os calcanhares. Na verdade, o consenso, hoje, é de que o crédito em relação ao levantamento científico que serviu de base à teoria da evolução devia incluir também Alfred Russel Wallace, que visitou o arquipélago Malaio na companhia de um criado, em 1858, e comprovou o fenómeno da seleção natural. Foi isto que levou Darwin a apressar-se a mandar para o prelo A Origem das Espécies, receando que o outro viesse a colher sozinho os louros pela descoberta. Os dois estiveram lado a lado na mesma sessão na Royal Society e leram os seus tratados. Mas a História reservou a Wallace um distante segundo lugar.

Seja como for, nem um nem outro estavam sozinhos ou foram sequer os primeiros a dar por esse processo de seleção que Darwin viu funcionar como uma descendência com modificação, apurando características e competências que melhoram a adaptação dos animais ao ambiente circundante. A ideia da evolução não era tão original no séc. xix como se possa pensar. Na verdade, há traços dela que remontam aos gregos. Na ilha de Lesbos, Aristóteles tinha já observado uma série de padrões na aparente diversidade do catálogo das espécies e, na sua História dos Animais, defende que o mundo não é governado por deuses mas se rege a partir de leis que emanam do interior de si mesmo. Se o filósofo notou que algumas partes do corpo dos animais cumpriam um determinado propósito, outras estavam lá como adereços que apenas persistiam como vestígios num processo de longa afinação. Para onde quer que olhasse, como carateres, os corpos dos animais ensinaram Aristóteles a ler esse esforço constante de adaptação que garantia a preservação das espécies.

Mas nem a longa lista de antecedentes, nem as numerosas teses científicas que tinham já entretido a hipótese da evolução, muitas vezes com riscos sérios para a saúde e credibilidade dos seus autores, nada disso foi o suficiente para que Darwin se sentisse seguro com a receção do seu livro. Entre tantos exemplos, até na sua família encontrava uma boa advertência quanto aos riscos que poderia correr ao publicar aquela obra. Erasmus Darwin, seu avô, um homem de fibra e, além de cientista, um poeta, que foi alvo de uma concertada campanha dos seus inimigos nos jornais para lhe mancharem a reputação, e que chegou a ver o seu editor enfiado na prisão, acabou por ceder, e deixou que o seu passo mais relevante defendendo a tese da evolução apenas fosse publicado depois da sua morte.

Na cena inicial do livro Darwin’s Ghosts, a autora, Rebecca Stott, coloca-nos no escritório de Darwin em Down House. Estamos em dezembro de 1859, A Origem das Espécies saiu há um mês e o autor está a viver “um prolongado ataque de ansiedade”. No dia em causa, Darwin acabou de receber uma carta de um dos tantos homens que, por esses dias, formavam uma longa fila com vontade de lhe fazer a folha. Baden-Powell, um físico e teólogo, foi dos primeiros a acusá-lo de ter assumido a autoria de uma tese que outros tinham desenvolvido. E se Darwin está de nervos em franja não é por ter sido apanhado de surpresa, mas porque há muito ele mesmo antevia que, para lá dos ataques dos opositores, mesmo do seu lado da barricada, era de prever que muitos outros cientistas se sentissem espoliados, ao vê-lo tornar-se o personagem central de uma longa tradição de intuições a que só faltava a concludente demonstração científica para se imporem.

Stott diz que Darwin não só esperava vir a ser acusado de plágio como sabia que, com o exército de todos aqueles que veriam as suas convicções abaladas pela sua tese, não podia dar-se ao luxo de ofender os seus aliados. De resto, nas suas notas para o livro, que entretanto fora apressado, tinha já uma lista de predecessores que contava reconhecer. Assim, na primeira edição americana do livro, este tinha apensa uma secção chamada “Tábua Histórica” em que reconhecia os contributos de 18 autores, incluindo Baden–Powell. Mas o mais curioso é que essa lista foi, ela mesma, e de forma um tanto atribulada, evoluindo nas subsequentes edições, com cada vez mais nomes, e se entravam mais, alguns também iam saindo, pois Darwin, se era um prodigiosa naturalista, não era menos consciente das suas falhas enquanto historiador, e ia um pouco ao sabor das polémicas, tentando dirimi-las e serenar os ânimos. O certo é que, na sua quarta edição britânica, publicada em 1866, a lista contava já com 30 nomes. Hoje, a maioria deles nem conseguiram garantir uma campa ajardinada numa nota de rodapé nos livros de biologia.

Há no entanto, e a par de Aristóteles, um outro precursor na teoria da evolução que, em anos recentes, tem vindo a ganhar preponderância. Um filósofo muçulmano que viveu em Baçorá, no sul do que é atual território do Iraque. Mil anos antes de Darwin, Abu Usman Amr Bahr Alkanani al-Basri, conhecido pela alcunha Al-Jahiz (“olhos esbugalhados”), numa das cerca de 200 obras que escreveu ao longo da vida e que se chamava Kitab al-Hayawan (O Livro dos Animais), além de registar cerca de 300 espécies de animais existentes à época, a certa altura diz isto: “Os animais estão implicados numa luta pela existência, pelos recursos, e de forma a evitarem ser comidos e a conseguirem reproduzir-se”, e noutro momento acrescenta: “Os fatores ambientais levam os organismos a desenvolverem novas características para assegurarem a sua sobrevivência, assim dando origem a novas espécies. Os animais que conseguem sobreviver e procriar passam aos seus descendentes as características que lhes permitiram triunfar”.

Ao contrário do filósofo grego, Al-Jahiz não separava a evolução de uma noção de design inteligente, pois era um firme crente. Mas isso não implicava uma cegueira ou distorção nas suas observações. O Livro dos Animais é uma imensa enciclopédia que se estende por sete volumes e que foi escrita entre 847 e 867 d.C., contendo aquele que terá sido um dos primeiros estudos compreensivos sobre os animais. E, de acordo com Stott, terá sido ele a falar numa teoria da evolução e no processo da seleção natural. Mas é uma obra que nos chega de uma época em que a ciência não se tinha ainda divorciado de outras formas de iluminação e, nas suas páginas, esta enciclopédia combina factos e especulação com poesia, anedotas, conjeturas filosóficas, divagações metafísicas e antropológicas, sem dispensar uma boa dose da eloquência e beleza constante em tantos versos do Corão.

Mas o que é mais admirável neste balanço entre a intuição poética e o frágil método científico de Al-Jahiz é o que o levou a defender a tese de uma interconexão. A metáfora da rede ou da teia é uma constante e a sua noção da interdependência é tida como um prenúncio da “teia emaranhada”, essa metáfora que se revelou central na forma como Darwin explica a ideia de seleção natural. Mas Al-Jahiz foi mais longe e reconheceu os ecossistemas ao observar os sinais de adaptação, concluindo que o que estava em causa era a “sobrevivência do mais apto”.