Terminaram as Conferências do Estoril. Três dias em que centenas de participantes, na sala, e milhares em todo o mundo, através dos relatos de jornalistas de todas as proveniências, tiveram o privilégio de ouvir personalidades inspiradoras e líderes que fazem o mundo girar.
Dez anos depois da primeira edição, ainda há quem se pergunte sobre as razões que levaram uma autarquia portuguesa a lançar-se no circuito internacional dos grandes fóruns políticos.
Criámos as conferências para provar que desafios globais podem, mas podem mesmo, ter respostas locais. E batizámo–las com o nome “do Estoril” para que herdassem o DNA de tolerância, abrangência e cosmopolitismo típico da nossa terra. É por isso que as conferências são muito mais do que um projeto ou um lugar. São uma parte de Cascais e da nossa crença na bondade humana e no poder transformador das ideias e dos indivíduos.
Portugal ganhou, por iniciativa de uma autarquia, um espaço de reflexão internacional que se posicionou como alternativa ao radicalismo de Porto Alegre e à ortodoxia de Davos.
Que uma autarquia possa realizar um projeto com o impacto das Conferências do Estoril é muito revelador da ambição de Cascais e da forma particular deste território de estar e intervir no mundo.
A qualidade dos painéis e dos participantes não foi uma novidade em 2019. A novidade foi a mudança de casa. As conferências mudaram-se do Centro de Congressos para o magnífico campus da Nova SBE. Tal corresponde à abertura de um novo ciclo. Passámos o testemunho à Universidade Nova, aos seus professores e, sobretudo, aos seus alunos.
Se os jovens são o futuro, então o futuro das conferências só pode estar nas suas mãos. Como dizia Fareed Zakaria, um dos oradores mais populares entre nós, “vamos ficar bem quando os jovens assumirem o poder, por isso só temos de garantir que não rebentamos com o mundo antes disso”.
Quem era jovem na década de 60 e 70 tinha no que acreditar. Havia comunistas e capitalistas, esquerda e direita, radicais e reacionários. E um muro a dividir o mundo.
Quem nasceu nos anos 80 e depois disso tem o seu horizonte de crenças mais limitado. Isto não é alheio ao facto de, durante os últimos 30 anos, a globalização ter apontado para a satisfação material das sociedades.
A finalidade coletiva, em particular no Ocidente, resumiu-se à acumulação de riqueza privada, que foi acompanhada de um paradoxal empobrecimento do espaço público.
Repare-se como muitas das nossas coisas já não têm valor, só preço. Ou como a sociedade confunde os conceitos de justiça e utilidade. Ou ainda como se esbateu a fronteira entre o que é bom e o que é mau, entre o que é certo e o que é errado. Repare-se, por fim, como nos tornámos tão profundamente individualistas com os nossos iPads, iPods, iPhones, símbolos de tantos “eus“ e de tão poucos “nós”. Há um inegável vazio motivado pelo individualismo.
Rigoberta Menchú, a ativista humanitária da Guatemala e Prémio Nobel da Paz, dentro da mesma linha, não poupou nas palavras: “Há uma decadência global no mundo que é a falta de ética, a falta de honestidade e de sensibilidade que converteu os humanos em intolerantes”.
A boa notícia é que podemos mudar isso porque sabemos que algo está mal. Temos de conceber alternativas a este estado de coisas.
Ouviu-se muito falar sobre a crise das instituições. Se as instituições supranacionais estão em crise; se os Estados nacionais estão em crise; sobre a sociedade para nos livrar da crise. E dentro da sociedade, os jovens.
Se há ideia poderosa que emerge das conferências é o apelo ao regresso dos jovens e das pessoas ao processo político. Anne Applebaum, a magistral jornalista e historiadora americana, dizia que a “democracia é muito fácil de quebrar, mas muito difícil de consertar”.
Não basta passar a vida a distribuir culpas pelo atual estado de coisas.
É fácil dizer que a culpa é dos professores que não educam, que a culpa é dos partidos que não representam ou dos governos que não governam.
Mas o que faz cada um de nós, em consciência, para que a educação comece em casa? Ou para que os partidos sejam mais democráticos? Ou para que os Governos sejam mais escrutinados?
Alguém dizia que a liberdade exige responsabilidade – e que é por isso que tantos têm medo dela.
A justiça global, que foi procurada nas conferências, não se compadece com o medo ou o conformismo. Exige ação e coragem.
É possível ter uma ordem mundial em que o indivíduo conta, em que a comunidade conta, em que a cultura e a identidade contam.
E isso, no fundo, foi o que fizemos nos Estoril durante todos estes anos de conferências: trabalhar uma ideia de um mundo melhor, do local para o global.
Levo destes dez anos de conferências memórias que se fizeram história que o tempo não apagará. Mas o momento que me terá deixado a impressão mais duradoura foi feito em português, por Mia Couto. Num discurso extraordinário sobre o medo, que acaba assim: “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome, têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras. E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe”.
É contra estes, os que têm medo que o medo acabe, que os jovens têm de se erguer.
É contra o projeto político da intolerância e do desespero e da ignorância que os jovens têm de marchar.
As conferências não terminaram há uma semana. Na verdade, só agora começam a fazer o seu longo caminho no sentido de tornar o mundo um lugar mais justo, mais democrático e mais solidário.