João Lobo Antunes faria ontem 75 anos e fazia cinco anos que, à mesma hora e no mesmo auditório da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, dera a sua última aula. Foi com boa disposição e com essa emoção, homenageando assim o marido, que Maria do Céu Machado percorreu 48 anos de Medicina, numa aula de jubilação com casa cheia. Na fila da frente, três Presidentes da República: Ramalho Eanes, Jorge Sampaio e Cavaco Silva. Marcelo, no Porto para acompanhar o funeral de Agustina Bessa-Luís, não esteve em pessoa mas apareceu num dos slides da lição, em que a pediatra falou de um dos projetos mais recentes no serviço de pediatria do Santa Maria, da associação Nuvem Vitória, em que anónimos e conhecidos se voluntariam para contar histórias às crianças. “Naquele dia os que tiveram alta ao meio dia disseram que não saíam enquanto não tirassem uma selfie. Marcelo chegou às 22h a perguntar porque é que estavam deitados, que ele não tinha sono nenhum àquela hora”, sorriu.
Do percurso pessoal e profissional para os sucessos da saúde maternoinfantil em Portugal, a médica, que faz 70 anos em outubro e nos últimos dois anos esteve à frente do Infarmed, falou dos avós como “primeiros motores” e dos “ses” que constroem qualquer caminho. Se os pais não tivessem vindo para Lisboa estudar, não se teriam conhecido e não havia um princípio de história. Foi o avô materno, pneumologista, que contribuiu para o interesse na profissão. Costumava contar que, em 1916, só tinha tido uma mulher colega no curso: “ Nunca casou, quem é que vai querer casar com uma médica?”. Eram já outros tempos. “Nunca quis seguir outra carreira senão a Medicina”, disse Maria do Céu Machado.
Licenciou-se em 1972 e fez o internato nos Hospitais Civis de Lisboa, mas pelo meio lembrou a experiência que marcou a turma de Medicina que incluía nomes como António Rendas, Eduardo Barroso ou Francisco George: o Serviço Médico à Periferia, que entre 1975 e 1982 distribuiu as fornadas de jovens médicos pelo país no que seriam os primórdios da medicina familiar. “Se não tivesse havido o 25 de Abril, o nosso curso de revolucionários não teria exigido que houvesse o Serviço Médico à Periferia. Há poucas fotografias, mas encontrei um artigo de Jorge Seabra de 2008: ‘Em 1975 dezenas de jovens médicos deixaram a cidade para levar a medicina ao interior carenciado. Contra céu e terra, estas equipas e as comunidades que os acolheram ergueram do nada as primeiras pedras do futuro sistema de saúde pública’”, leu. “Uau, fomos nós”.
Seguiu-se o acesso à especialidade e a pediatria acabou por surgir por contágio, pelo contacto com Mateus Marques no Curry Cabral, pediatra de referência. “Era de tal maneira fantástico na forma de lidar com as crianças e com a doença que todos os que estávamos naquela unidade fomos para pediatria”. O interesse em nefrologia pediátrica levou-a para a Maternidade Alfredo da Costa – mesmo que inicialmente não gostasse “nada” de recém-nascidos, confessou – e para a Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa. Daí passaria pelo Amadora-Sintra, no início da parceria público-privada que terminou no final dos anos 90, regressando depois ao Santa Maria e à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. A preocupação com a política de saúde cresceu enquanto liderou o Alto Comissariado da Saúde, convidada em 2006 pelo então ministro Correia de Campos.
“A minha paixão é adolescência”
Se a pediatria vai dos “800 gramas aos 80 quilos ou mais”, descreveu a médica, mostrando um recém-nascido pré-termo de 28 semanas e um jovem de 17 anos, Maria do Céu Machado sublinhou que o trabalho com adolescentes acabou por tornar-se a grande paixão, considerando que nem sempre é dada devida importância à idade em que os “jovens começam a achar que os pais são difíceis”, sorriu, invocando a definição de um colega.
Lembrando os estudos feitos por Jay Gieed, especialista no cérebro dos adolescentes, sublinhou que se hoje se sabe que, aos seis anos, 95% do cérebro das crianças está completo, mas na puberdade dá-se uma reconfiguração em que se perdem metade das sinapses – a ligações entre células nervosas – um processo que ocorre de forma diferente conforme o contexto e vivência dos jovens. Reivindicar e ser impulsivo faz parte do processo. “Achamos que os primeiros dois anos são muito importantes para as crianças, mas a adolescência é ainda mais importante”, sublinhou, defendendo que é preciso investir mais em medidas que promovam saúde e bem-estar dos jovens.
Entre 1972 e 2019, desde que começou a trabalhar, destacou a redução de 75% na mortalidade infantil, uma evolução “brutal” que tornou Portugal um dos países mais seguros para recém-nascidos, mas notou também as modificações nas famílias, que colocam novos desafios.
“Davam-se umas palmadas no rabo, agora é politicamente incorreto. Agora as famílias têm constituições muito variadas, os pais estão muito centrados nas crianças e a falta de empatia é notória, todos têm um computador, agora que falem uns com os outros não tenho a certeza”, disse, criticando também o método de ensino. Traduz-se em jovens stressados e assoberbados, que sentem a pressão dos pais para ter boas notas e entrar na faculdade mas que ao mesmo tempo não anteveem grandes perspetivas para o futuro e sentem que tanto estudo é inútil. “Sei que vivemos numa sociedade em que todos os dias vemos a toda a hora na televisão toda a gente a queixar-se de tudo, mas temos de pensar nos jovens e ouvi-los. Por vezes estudo com eles [no auditório estavam sete netos] e a matéria é muito aborrecida. Há programas de saúde para adolescentes e jovens mas temos de contemplar também educação e emprego. Não chega fazer planos na saúde”.
Investir na saúde a longo prazo
Sobre as políticas de saúde, defendeu a necessidade de mais planeamento para evitar decisões “aos soluços”, disse ao i no final, o que se sente que tem acontecido nos últimos anos. E foi por isso que chamou à aula de jubilação “um exercício de trigonometria”, por sugestão dos netos mais velhos. “A trigonometria estuda, a exemplo do triângulo retângulo, as relações dos ângulos com os segmentos de reta e é o que precisamos de fazer. É estudar e planear mais”.
Mudar o paradigma dos cuidados de saúde centrados na doença para incluírem a componente de bem-estar, do serviço de saúde centrado nos hospitais para o foco no doente e lidar com uma pressão económica que será cada vez maior, dado o preço da inovação, foram os desafios apontados.
“Temos imensos indicadores sobre resultados, mas pouco sobre processos, perceber como chegamos a um determinado resultado. Podemos ter médicos e enfermeiros a mais ou a menos. Se não nos debruçarmos nos processo, podemos chegar aos resultados com desperdício. Por outro lado, não vale a pena desenvolver políticas de saúde para mortalidade que não é evitável”, defendeu, apontando os tumores malignos da mama, a doença isquémica do coração, tumores malignos da traqueia e pulmão ou o suicídio como algumas das áreas mais sensíveis a políticas de saúde e apontando o combate ao tabagismo nas idades mais jovens como uma das áreas em que é preciso investir. “O que vemos à entrada dos edifícios são raparigas jovens a fumar, é preciso fazer qualquer coisa, pelo menos dizer-lhes que vão ficar cheias de rugas. É um problema de saúde pública: sabemos que o tabaco é uma causa de restrição de crescimento intrauterino e que quando as crianças nascem com menos de 2,5 quilos de peso vão ter maior risco de diabetes, obesidade”.
Como queremos envelhecer?
“A inovação é responsável pelo aumento da longevidade, mas não estamos a pensar nisto de forma global”, disse a médica, que defende uma abordagem de “medicina integrativa” e que tenha em conta o lado do sofrimento – esteve no centro da cadeira de medicina narrativa que lançou na faculdade com Lobo Antunes. “Que me interessa ter mais 20 anos de vida se vou acabar sem ver, sem ouvir e com um robô a fazer-me companhia? A esperança média de vida é uma conquista fantástica, mas como é que queremos envelhecer?”, disse, destacando ainda assim inovações na área da medicina personalizada e terapia genética que começam a permitir dar resposta a algumas doenças crónicas.
A concluir, deixou a ideia de que com “visão e investimento a longo prazo nas políticas de saúde, vamos ter mais valor”, um apelo que se faz ouvir no setor da saúde há largos anos. Um obstáculo foi apontado na semana passada por Correia de Campos num artigo de opinião: “A reforma do SNS parece apavorar as Finanças, mas nem sequer é dispendiosa se for bem planeada e bem executada”.
Substituição no Infarmed "para breve"
Depois do fim do mandato em janeiro, Maria do Céu Machado será substituída na liderança do Infarmed durante este mês. Ontem, à margem da lição de jubilação, a ministra da Saúde disse que a nomeação de uma nova direção para o regulador do medicamento está “para breve”. Nomeada em 2017, a médica foi crítica do processo que previa a deslocalização do Infarmed para o Porto, tema que ontem não fez parte do sumário da aula de despedida. Também a discussão em torno da Lei de Bases da Saúde não entrou nas reflexões. Numa entrevista ao Público, a pediatra defendeu a avaliação das PPP e considerou que “o radicalismo não serve a saúde em Portugal”. Tenciona regressar à consulta privada e dedicar mais tempo às atividades cívicas e voluntariado no hospital, disse ao i, uma vertente na vida dos serviços de saúde que considera ser hoje mais necessária do que no passado. “Os doentes ficam internados por períodos mais curtos e há menos recursos, sentem-se por vezes desapoiados.” Fausto Pinto, diretor da FMUL, lembrou que, aos 40 anos, a médica foi das mais jovens chefes de serviço do país. Destacou as várias posições ao longo de uma carreira “brilhante” e a personalidade forte da médica, citando Agustina. “A grandeza dum espírito está na pluralidade e plenitude da sua sensibilidade. Todo o vasto espírito é sempre um tanto santo e outro tanto demoníaco. Todo o artista exagera ou dilui, aviva ou simplifica”.