“Comecei a realizar acidentalmente, tive de pegar na câmara e fazer”

“Comecei a realizar acidentalmente, tive de pegar na câmara e fazer”


Para lá do trabalho como ator, Welket Bungué tem nos últimos anos escrito e realizado os seus próprios filmes. No último IndieLisboa estreou Arriaga.


Foi sobretudo através do cinema brasileiro que começámos a descobri-lo. Foi no período que passou no Rio de Janeiro que lhe foram chegando os primeiros papéis com algum destaque. Joaquim (2017), de Marcelo Gomes, foi um dos primeiros. Prestes a estrear-se, com a sua participação, estão a última longa--metragem de Laís Bodanzky, Pedro, e ainda Alexanderplatz, longa-metragem de Burhan Qurbani rodada em Berlim. Em teatro tem trabalhado sobretudo com a Mala Voadora, em espetáculos como Moçambique (2016) ou Amazónia (2017). Para lá do trabalho como ator, entre Portugal, o Brasil e a Alemanha, Welket Bungué fez-se também realizador. “Acidentalmente”, conta ao i numa conversa em Camarate, o bairro onde vive e onde rodou Arriaga, a última de uma já vasta lista de curtas-metragens que estreou em Portugal, na competição nacional do último IndieLisboa. 

A primeira vez que nos cruzámos, no final de um espetáculo da Mala Voadora, o Moçambique, no Maria Matos, estavas já a trabalhar no Arriaga. Tinham perdido o material num assalto à mão armada, no Rio de Janeiro. O filme estreou–se agora, em 2019, na competição nacional do IndieLisboa, mas entretanto realizou uma série de outras curtas.

Produzi quatro ou cinco filmes, sim. No Brasil e aqui. Alguns feitos com telemóvel, outros com câmara mas num registo a que chamo cinema de autorrepresentação, em que me filmo a mim mesmo ou situações particulares das viagens que tenho feito. Depois, na edição, procuro agregar elementos narrativos ou imagens de arquivo que dialogam com as imagens captadas para criar um sentido para o filme. Desse género, este ano produzi cinco ou seis.

De forma muito mais rápida.

Mais rápida e mais artística – ou autoral, se quiser. Este filme, o Arriaga, já responde àquilo que é uma convenção de estrutura narrativa e de produção de cinema convencional.

Teve um apoio da GDA [Gestão dos Direitos dos Artistas]. Mais alguma das suas curtas teve apoio institucional?

O Bastien [2016], também da GDA. As outras, não. Com telemóvel fiz três filmes, depois tenho outros de videoarte, com câmaras digitais, só que são experimentais, anarrativos, não seguem uma linha de construção dramática convencional.

Como o Aginal, filmado em Berlim.

Sim, esse está pronto, e foi com telemóvel. Há um outro que foi filmado no Vale do Pavão, na reserva natural do Parque Nacional de Itatiaia, no Rio de Janeiro. Esse tem um título em balanta que é N’sumande Tchalih Hudi.

Esse cujo nome não consigo pronunciar.

[Risos] Pode chamar-lhe Hudi. Significa “é bom conhecer-te”. Está finalizado, é todo ele falado em crioulo, está pronto e está a ser submetido a festivais. Foi exibido agora em privado numa mostra de filmes que fiz no Hangar [em Lisboa] e as pessoas gostaram muito. A maior parte da produção feita entre o ano passado e este ano ainda não se estreou, está a ser submetida a festivais. O foco tem sido festivais de língua portuguesa, em toda a lusofonia, incluindo o Brasil. É ver quando chegam a Portugal. 

Fale-me um bocadinho da relação da Vã Alma, a websérie que realizou e que está no YouTube, com o Arriaga. 

O Arriaga demorou cinco anos a produzir e entretanto tinha de produzir outras coisas, porque o último filme tinha sido o Bastien [2016]. Esses anos pelos quais o Arriaga se estendeu permitiram editar e reescrever o argumento, e então, para não estar parado, pensei: vou desenhar a história, o background das personagens do Arriaga, o que elas fizeram até chegarem ao momento do Arriaga. 

O Arriaga chegou ao IndieLisboa como uma sequela dessa websérie mas, no processo, foi ao contrário: a Vã Alma foi uma prequela do Arriaga. 

Exato, é mesmo isso. E aí pude aprofundar a morfologia deste bairro [Camarate], porque isto foi filmado aqui, para percebermos quais são os becos, quais são os lugares, quais são os contrastes e onde é que estamos relativamente a este lugar e ao centro de Lisboa como o conhecemos – ao centro, quer dizer, à zona limítrofe, o Lumiar, que é a área de transição para o centro -, e podermos ver também qual é o background das personagens. Quais são as preocupações de cada uma delas, como é que se afetam umas às outras e, naturalmente, como temos um enredo que se direciona para o protagonismo do Arriaga, como é que os problemas de cada um influenciam os outros e resvalam para essa pressão sobre ele. 

Como chega ele àquele momento em que diz “o meu nome é Arriaga”.

Ele diz “o meu nome é Arriaga” e comete o delito. E isso é interessante porque, por exemplo, na primeira sequência do filme, nos primeiros cinco ou seis minutos, temos a apresentação de várias personagens e poucas delas têm voz. Se virmos a Vã Alma vamos perceber o discurso deles.

Uma curta-metragem é sempre muito…

Curta. [risos] 

É já perto do final do filme, nessa cena em que ele diz “o meu nome é Arriaga”, que ficamos a saber o nome do protagonista. O filme parece todo construído para esse momento.

Há ali uma grande destituição de identidade. Ele opta por cometer um delito para poder ser aceite pelos jovens do bairro. Há uma destituição de identidade ou de reconhecimento. Se reparar, ele nunca é tratado pelo nome. É chavalo, escumalha – “conheço muitos escumalhas como tu” -, ou seja, ele é objetificado, desumanizado, racializado, de alguma maneira, e nunca é tratado pelo seu nome. Ao evidenciar o seu nome, isso confere-lhe humanidade. Mas, ao mesmo tempo, ao dizer isto, ele torna-se o reflexo do que o outro queria ver ou estava a ver nele, porque é a partir desse momento que ele se torna altamente violento. E isso faz com que não saibamos se ele ia disparar sobre aquele homem no chão ou não. 

Parece quase a história do que aconteceu há meses no Bairro da Jamaica. Se não tivessem sido feitos aqueles vídeos…

Pronto. Percebe? Em termos de escrita, o nome dele nunca tinha sido citado até àquele momento. 

Exato, o filme chama-se Arriaga e não percebemos quem é o Arriaga até esse momento. Este filme partiu daí, da necessidade de falar sobre isso? Ou antes de uma vontade de retratar este bairro periférico e a história veio depois?

Queria falar sobre a violência estrutural que deriva da passividade ou de uma espécie de condescendência, por parte da sociedade em que vivemos, que de alguma maneira contribui para que cidadãos na condição do Arriaga sejam cada vez mais recorrentes. A meu ver, têm a ver com uma falta de orientação, com uma ostracização de identidade, com um deslocamento do ponto de vista geográfico e das acessibilidades também, que estão centralizadas numa determinada área da cidade – ao contrário destas zonas onde habitam estes jovens, que são áreas altamente guetificadas e marginalizadas e que, por conta das precariedades e das desigualdades que ali habitam, levam as pessoas a tomar decisões muitas vezes incautas ou que tenham de lidar com ilegalidades, com situações que as colocam no espaço da ilegalidade ou da marginalidade, para poderem singrar. Acho que quando se fala neste filme é importante falar-se também sobre o Bastien: um outro personagem, com um outro perfil que está também enquadrado nesta condição.

Sim.

O Bastien é um tipo que esteve envolvido em atos ilícitos também, mas que todo o proveito, o lucro que ele tirou dessa vivência investiu para se tornar um pintor. Depois essa dívida antiga é-lhe cobrada e ele tem de se destituir da arte que concebeu para conseguir o dinheiro para pagar essa dívida. Este Arriaga pertence à terceira geração de afrodescendentes aqui em Portugal. Felizmente, a mãe dele trabalha e ele não tinha necessidade nenhuma de cometer um delito como este, não fosse ele alguém que não consegue ver…

Posicionar-se. 

Exatamente, que não consegue sentir--se aceite pelos seus pares. Mas isso acontece também porque há um conflito no meio social em que ele habita – não só no bairro, mas provavelmente na escola também. Muito provavelmente, o Arriaga não estuda ali no bairro, estuda no Lumiar ou num outro colégio fora, porque lhe chamam beto: “Vocês, betaria da zona, curtem dar para espertos, mas afinal… são pussies”. É um pretender. Do ponto de vista do Bonerouge, do Kanja Fria, do Lucy, daqueles rappers todos que estão ali, ele é um menino. O Bastien é tratado por “coninhas”; o Arriaga seria a mesma coisa para eles e é por isso que se arma em durão para poder ser aceite pela clique, que é o gangue. É uma expressão para gangue. E temos de perceber que há pessoas com este perfil efetivamente, pessoas que não precisam de estar numa situação de marginalização. Estudou, tem formação, vemos o quarto dele e o quarto dele está repleto de bilhetes de concertos, tem iPads, tem tudo e mais alguma coisa. Apesar de não conseguirmos ver muitos detalhes disso, ele é uma pessoa que não passa por necessidades. Para mim, o filme visa esse lugar estereotipado em que se encontram determinados indivíduos – neste caso, é um afrodescendente mas poderia ser um cigano, poderia ser um nepalês imigrante, poderia ser um indiano. São pessoas que fazem parte do tecido social, da malha da cidade de Lisboa e que, por conta das suas origens, por conta da cultura de que fazem parte – muitas vezes não estão legalizados -, veem–se afastados, veem-se remetidos para lugares marginalizáveis. Mas são pessoas que têm sonhos, pessoas que têm algo para nos ensinar e que precisam de encontrar o seu lugar de fala e de escuta. Será que se tivesse havido orientação para este jovem – se tivesse falado com os pais ou se tivesse escutado a prima, se não tivesse visto tantos filmes de realidade social e Parapapa [música de Snotkop que integra a banda sonora de Tropa de Elite [2007, José Padilha] -, será que poderia ter-se tornado outra coisa?

Quando veio com a sua família da Guiné não vieram logo para Camarate, pois não? Chegaste a Portugal com que idade mesmo?

Com dois anos. Estou a voltar agora, finalmente, para passar lá um mês.

Porque nunca tinhas lá voltado?

Não. Vim para cá com dois anos e primeiro morámos no Campo Mártires da Pátria, depois fomos para a Ramada, aos 11 anos fui para um internato em Beja onde vivi oito anos, em 2007 voltei para a casa dos meus pais e desde 2008 que estamos aqui. 

Mas viveste no centro de Lisboa, estudaste num colégio em Beja, a tua realidade não foi propriamente esta. Foi, por comparação, bastante privilegiada.

Sim, o meu background não é este. Aqui confrontei-me com a realidade de amigos meus.

E de muita gente que veio também da Guiné.

De muita gente que veio também da Guiné ou de Angola e que viveu na Ramada, na Arroja, Odivelas…

E “o que é isto?”, pensaste.

O que é isto? Porque vivia no colégio, passava lá grande parte do ano, só nas férias é que vinha para casa dos meus pais. Mas deixei o colégio definitivamente em 2007 e só entrei para a faculdade em 2009. Nesses dois anos tive de construir laços de amizade e estreitá-los porque, até aí, os meus amigos estavam todos no Alentejo, e aí fui-me aproximando das pessoas do bairro. E fui entendendo qual era a realidade deles. Foi a partir daí que me fui sentindo cada vez mais inspirado para falar sobre esta temática da realidade social.

Como é que, não tendo crescido exatamente aqui mas tendo essa vivência, ainda que mais tardia, vê a forma como estas margens têm sido retratadas no cinema português por realizadores que, mesmo com toda a pesquisa, com toda a dedicação e todo o cuidado, não terão nunca como conhecer estas realidades da mesma forma? 

Artisticamente, acho que pode haver mérito nisso. 

Não acha que há mérito também na vontade de tentar perceber, de tentar chegar a esses lugares para os quais não queremos olhar enquanto sociedade?

A questão é que, socialmente, falando numa questão de classes, essas pessoas que fazem esses filmes… não sei até que ponto é que se envolvem mesmo na temática. Fazer filmes de realidade social, ao contrário de outros géneros, não pode ser só uma questão de apetite criativo ou de desejo de contar uma ficção sobre determinado lugar. Acho que há uma responsabilidade acrescida. Por exemplo, muitos dos atores que foram descobertos com o Cidade de Deus [2002, Fernando Meirelles, Kátia Lund], por exemplo, ficaram depois ao abandono. Com o filme, tornaram-se famosos efetivamente, as suas imagens foram usadas e gastas, porque o filme correu o mundo, mas depois não houve continuidade do ponto de vista das suas carreiras. É preciso muito cuidado quando trabalhamos com ficções de realidade social porque, indo filmar para aqueles lugares, estamos a apropriar-nos da realidade daquelas pessoas, a pincelar aquela realidade com os artifícios cinematográficos que temos à nossa disposição e a levá-lo para fora como sendo uma peça artística. Não podemos é esquecer-nos que, do ponto de vista social, é preciso um envolvimento e uma honestidade de quem vai à procura destas temáticas e destas pessoas para que, depois dessa intervenção, possa haver algum tipo de acompanhamento e algum tipo de continuidade. Ou trata-se simplesmente de ostracismo: vamos, capturamos o que nos interessa, mas estamos sobretudo a fazer uma coisa que é para proveito próprio. Claro que podemos de alguma maneira colocar-nos à sombra daquela que é a intenção última, que é evidenciar os problemas das zonas periféricas de Lisboa. Mas não pode ser só isso. Não pode.

Veio daí a sua necessidade de deixar de ser apenas ator para passar também a escrever e a realizar os seus próprios filmes.

Eu comecei a realizar acidentalmente.

Mas está a fazer filmes aqui, num lugar que é seu também, ao qual pertence. Não filmou o Arriaga noutro bairro qualquer, filmou em Camarate. 

Sim. Mas se me envolver com uma produtora agora e as locações que arranjarem forem noutro lugar, posso também fazer este filme. E do ponto de vista da legitimação, da captura das imagens daquele lugar, da direção, do tipo de texto, do tipo de corporalidade que se possa ter naquele lugar, as pessoas podem perguntar-me: “Então mas nunca estiveste aqui, não conheces este lugar, porque é que vens para aqui filmar?” Pronto. Também sabemos que há argumentos feitos nos Estados Unidos que vão ser feitos no Egito, e esse argumento cai. Pode ver também que a minha filmografia tem muitos outros filmes que não têm nada a ver com realidade social, mas confesso que este é um tema que me interessa abordar porque acredito que, política e socialmente, eu, como as pessoas que como eu estão munidas de conhecimento a esse respeito, devem intervir, devem denunciar, devem levar ao grande público as discussões sobre aquilo que são os direitos ou as desigualdades e as incoerências relativas ao posicionamento do Estado naquilo que toca aos direitos dos cidadãos ou das minorias étnicas e àquilo que acontece aqui. Estes filmes visam questionar muitos desses aspetos.

Quando o Marco Martins estreou o São Jorge, rodado no Bairro da Jamaica, António Costa disse publicamente, já primeiro-ministro, que desconhecia aquela realidade.

Ironicamente?

Não. Desconhecia.

Então ainda bem, ainda bem que foi feito o filme. Não sei se tenho mais legitimidade do que outras pessoas para falar sobre este tema. Atuo enquanto artista, enquanto pensador, enquanto alguém que está preocupado com consciencializar as pessoas de que precisamos de abrir mão de certos privilégios para que outros possam conseguir um equilíbrio e uma equidade maior naquilo que são os seus direitos enquanto cidadãos. Muitas destas pessoas que se movem nas áreas limítrofes da cidade sofrem muito e têm muitos constrangimentos para conseguirem chegar a outros lugares. Neste filme queremos mostrar que há gente que anda na escola, gente que é filha de pais que estão legalizados, pais que nalguns casos tiveram de emigrar para outros países para trabalhar, para França, como o caso do pai do Arriaga, como vemos na Vã Alma, ou da mãe, que trabalha muitas horas, pessoas que do ponto de vista dos seus deveres enquanto cidadãos têm tudo cumprido. E então porque continuam estas pessoas com problemas para aceder às esferas culturais ou a esferas que legitimem o discurso delas? A oferta de acessos ao centro da cidade, do ponto de vista da locomoção até, é absolutamente diminuta.

Exato. Como se sai daqui?

Como se sai daqui ou como se faz as pessoas chegarem aqui? Quais são os dispositivos culturais ou de produção de cultura disponíveis nesta área para fazer com que as pessoas venham para aqui à procura de outra coisa que não seja simplesmente as casas onde moram?

Dizia que começou a realizar filmes de forma acidental. Teve a ver com o tipo de papéis que lhe eram sistematicamente entregues como ator?

Isso, foi mesmo isso que está a dizer. O que aconteceu foi que escrevi o Bastien e convidei alguns realizadores para o realizarem, mas grande parte deles estava sem disponibilidade. Então tive de pegar na câmara e fazer. Foi também uma necessidade que me veio parar ao colo, infelizmente, porque filmei o Bastien em 2014 e faço teatro desde 2005 e cinema desde 2009, e até então não me tinha visto a fazer nenhum personagem, quer em televisão, quer em cinema, que tivesse relevância do ponto de vista do desafio enquanto artista e que não estivesse intrinsecamente ligado às temáticas da exploração escravocrata ou do banditismo. Percebe? O meu corpo, o meu trabalho era chamado para representar ou o bandido ou o escravo ou o professor de ginásio ou o playboy, sexualizado e objetificado. Então percebi que tinha de começar a escrever as minhas histórias e a dirigi-las. Felizmente, depois fui para o Brasil.

Que lhe abriu todo um outro horizonte.

No Brasil abriu-se todo um mercado para mim: comecei a fazer filmes com um protagonismo maior e foi uma chapada de luva branca para aqueles que não quiseram aproveitar o meu talento aqui em Portugal.