O alerta surgiu depois da onda de calor no verão de 2003, com 17 dias de temperaturas muito elevadas que chegaram aos 45,4 oC e foram associadas a um excesso de 1953 mortes em todo o país face ao que é o padrão habitual de mortalidade. Um estudo apresentado em 2008 pelo departamento de epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), que considerou que uma parte apreciável das mortes ocorreram dentro de estabelecimentos hospitalares, estimou que nos internamentos em serviços com ar condicionado houve uma redução do risco de morrer em 40%, concluindo existir um “efeito protetor”. Uma década depois, a climatização ainda não é uma realidade em todos os serviços do Serviço Nacional de Saúde: cerca de um quinto das salas dos hospitais e centros de saúde a nível nacional não têm ar condicionado.
O ponto de situação é feito ao i pelo Ministério da Saúde. Questionado sobre se existe um levantamento atualizado de quantos hospitais não têm ar condicionado, na sequência do alerta feito pelo estudo do INSA, o ministério remeteu para o relatório Avaliação das condições ambientais e de climatização das entidades prestadoras dos cuidados de Saúde, realizado pela Direção-Geral da Saúde e pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge e concluído em maio do ano passado.
Na altura foi submetido um questionário às cinco Administrações Regionais de Saúde (ARS), tendo havido uma adesão de resposta de 75%, com dados referentes a 269 unidades e, especificamente, 33 225 salas, quer de cuidados hospitalares quer de cuidados de saúde primários, refere a tutela. “Os resultados mostram que a proporção de salas climatizadas a nível nacional rondou os 80%, sendo a região de saúde com maior proporção de salas climatizadas a Região do Alentejo, com 91,7%, e aquela com a menor proporção de salas climatizadas a Região do Algarve, com 75,3%”, indica o Ministério da Saúde.
Já em março deste ano foi pedido às ARS para atualizarem os dados, revela ainda a tutela. “As respostas enviadas mostram um ligeiro aumento destes números”, diz o ministério, adiantando que até à data foram aprovados pelo Ministério da Saúde e se encontram em execução projetos no âmbito da eficiência energética no valor de 28 milhões de euros. Não existe, porém, uma meta temporal para garantir que todos os serviços e salas do SNS têm climatização.
“Sauna” em Famalicão A subida dos termómetros nos últimos dias levou o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) a denunciar a falta de condições na urgência do Hospital de Famalicão, que pertence ao Centro Hospitalar do Médio Ave. “Calor insuportável temperado pelo cheiro a fossas, em todos os setores da urgência (incluindo a Sala de Partos), onde o ar condicionado recorrentemente está avariado (se é que alguma vez funcionou) e a qualidade do ar é extremamente duvidosa”, descreveu o SIM numa nota publicada online, considerando que não tem havido empenho suficiente na resolução do problema.
Ao i, Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do SIM, admite que as falhas no ar condicionado não são exclusivas do Hospital de Famalicão, indicando ter sido a unidade da qual tiveram mais queixas na última semana. “Quando existe falta de investimento e de manutenção no SNS, ela atinge todos os equipamentos”, alerta Roque da Cunha.
O porta-voz do Centro Hospitalar do Médio Ave reconheceu ontem ao i dificuldades na climatização na última terça e quarta-feira, mas nega avarias recorrentes no ar condicionado, sublinhando ter-se tratado de um problema pontual. “Perante o calor foi necessário reforçar a potência do ar condicionado, um processo que demora algumas horas até normalizar a temperatura”, justificou a mesma fonte. “Não houve qualquer avaria”.
Não chega ter ar condicionado Para o bastonário dos médicos, o cenário descrito em Famalicão não é surpreendente. Miguel Guimarães diz que, além dos locais que não têm ar condicionado, existem inúmeros serviços onde os aparelhos não funcionam devidamente nem são regulados atempadamente para tornar o ambiente mais confortável e seguro para doentes e profissionais de saúde. “Muitos sítios não têm ar condicionado e há outros que têm mas a decisão de ser ligado ou como é regulado é tomada centralmente pela direção”, diz o médico, reconhecendo que já deu consultas com a temperatura a superar os 30 oC. “É mau para os doentes, sobretudo para os que são mais vulneráveis. Por outro lado, por mais boa vontade que exista, com temperaturas elevadas, os profissionais ficam mais lentos e mais cansados, pelo que está em causa também a segurança clínica”.
Perante o alerta de que as ondas de calor serão cada vez mais frequentes e intensas, Miguel Guimarães defende que, além dos alertas habituais à população por parte das autoridades de saúde sobre as precauções a ter nos dias mais quentes, seria necessário uma avaliação do que é preciso fazer nesta área. “Quando se reconhece que 20% das salas não são climatizadas, e admito que o número possa ser maior, isso significa que um quinto dos doentes e dos profissionais acabam por estar em salas que não têm as condições adequadas. Não é aceitável num país da Europa ocidental”.
Questionado sobre se estão previstas este ano medidas adicionais de sensibilização da população e proteção dos grupos mais vulneráveis, o Ministério da Saúde remete para um despacho de 2017 que veio reforçar a importância e a necessidade de os serviços e estabelecimentos do SNS implementarem os Planos de Contingência de Saúde Sazonal, o que inclui “promover a manutenção preventiva dos sistemas de Aquecimento, Ventilação, e Ar Condicionado (AVAC), de modo a aumentar a sua eficiência e a minimizar as avarias, e ainda disponibilizar salas climatizadas para, em caso de calor ou frio intenso, acolher doentes crónicos que necessitem de cuidados básicos”. A 1 de maio foi também ativado o sistema de monitorização e vigilância Ícaro, que estima o efeito do calor na mortalidade e permite identificar “períodos em que se espera um efeito negativo das temperaturas na saúde humana, possibilitando a implementação de medidas de proteção previamente preparadas pelas unidades de Saúde.”
Os dados disponíveis no portal do SNS, com base nas medições do Ícaro, indicam que, nos últimos dias, o calor teve um efeito “não significativo” sobre a mortalidade geral no país: houve um ligeiro aumento do número de mortes diárias, mas dentro da variação expetável. Quando existem picos de mortalidade, o boletim diário do SNS dá conta de um efeito significativo na mortalidade, o que se verificou, por exemplo, entre 16 e 21 de junho do ano passado. O maior pico de mortalidade em 2018 ocorreria a 5 e 6 de agosto, dias extremamente quentes em que morreram mais pessoas do que nos dias de pico da gripe e do frio no inverno, que habitualmente são o período do ano com mais óbitos em Portugal.
Por agora dissipam-se as preocupações com o calor. Os termómetros regressam esta semana a temperaturas habituais para a época, prevendo-se mesmo céu nublado e aguaceiros no Norte e no Centro.