Agustina. Um manguito com arte e imensa classe

Agustina. Um manguito com arte e imensa classe


Morreu a escritora que entre nós mais resistiu à vulgaridade e cuja obra toma balanço no arcaico, não para causar enlevo, mas para desferir modernamente uma bofetada na mediania que limita hoje a ação cultural.


O génio tornou-se uma categoria demasiado assediada. Por tudo e por nada, lá vem um medíocre qualquer em campanha fazer de outro, não muito melhor, seu mestre, e exigir as maiores honras. E vive-se de honras justamente quando falta a disciplina intimidatória das obras mestras que contém a pulsação desmedida das coisas sujeitas ao sentimento de atração e repulsa que no mais ínfimo deixa a marca do universo. Mas diante do desaparecimento de Agustina, falar em génio sabe a pouco, e somos obrigados a explicar, partir em busca de exemplos, para deixar claro que não queremos recorrer às fórmulas de sobranceria comum entre os artistas, aos exageros que uma circunstância como a morte sempre tolera.

Da autora que sempre resistiu a poder ser declarada como “nossa”, nacionalizada para a vulgaridade dos usos e vícios mais caseiros, pode dizer-se que a sua contemporaneidade se estende de forma tão vasta como dispersa, e, assim, como Pedro Mexia notou, pode considerar-se oitocentista, modernista ou “pós–moderna” conforme lhe convém. O certo é que a sua tradição foi o romantismo, e se Victor Hugo aí se impõe como uma figura tutelar, não é difícil reconhecer as parecenças, a mesma orgulhosa ambição e os efeitos no que toca ao grau da indigestão e fascínio que as suas obras provocaram. Assim, seria justo notar que tal como o francês surgia como “um profeta sem igreja e a vaguear à beira do infinito” (Aníbal Fernandes), também da autora nascida em Vila Meã se poderia dizer isto, e aproveitar o espanto que levou Jules Renard a dizer: “Só Victor Hugo fala; o resto dos homens balbuciam”.

No nosso contexto, Agustina parecia ser, de facto, aquela escritora que superava o balbucio. É sempre uma última prova a que certos espíritos nos dão, baixando pelo mais humílimo dos métodos “um total da humanidade” a esta forma onde os próprios séculos ganham movimento e, de algum modo, na música de uma escrita, se tornam apreensíveis. Daí que, quando Hugo nos fala de homens–oceanos, não seja difícil incluir esta mulher com o seu à-vontade entre gigantes. Ela que, com o seu característico desassombro, numa conferência afirmou: “Em geral não há livros escritos por mulheres. Por homens, tão-pouco. São fêmeas as que se confessam em páginas e páginas de queixume ou de triunfo sexual. E os homens escrevem de maneira submissa à sua masculinidade. Só alguns, muito poucos, têm a anomalia de ultrapassar as raias desse dever – o de serem machos exemplares. Quando isso acontece, são mais profundos do que o mar e mais vastos do que o mundo”.

Quanto a Hugo, naquele testamento à sua corrente estética no qual desenha a sua linhagem, ao escavar entre os exemplos dos seus predecessores, formulando uma teoria do génio, diz-nos que contemplar as suas almas produz o mesmo encadeamento que se sente diante do espetáculo do oceano. E se a frase que entende o génio como “uma longa paciência” ganhou vida de eco, há também o frémito de certas naturezas que nos desenfastiam do peso de tantas lições práticas, esse que conduz a uma sublevação na ordem das coisas. E se “a tradição literária portuguesa é hostil à desordem, suporta mal o caos, mesmo genial”, como notou Eduardo Lourenço, Agustina foi tantas vezes de tal modo desafiadora que só restava desviar o olhar. Para não a enfrentar, houve um culto frio à sua volta, uma admiração como a que se cultiva por certos ícones de culturas desaparecidas e que continuam a emanar uma força inquietante e ameaçadora. Mais honesto, muitas vezes, teria sido reagir perante esta obra com um justificado pavor.

De resto, além de um restrito grupo de admiradores, coube a Agustina, através da sua intervenção pública – marcando também aí uma espécie de diferença sideral –, abrir as linhas, unir nos seus escritos o lado avassalador da sua intuição a uma clareza invulgar de propósitos. “Esta faculdade de compreender tudo, de encontrar o lado bom do pecado e do erro em geral, de legitimar a fraqueza humana está na razão direta de medir as nossas forças com a natureza. Não há combate mais heroico do que o que travamos com a nossa interioridade. ‘Cada homem é um místico que se recusa’, diz Cioran. O escritor é um místico que se aceita; ele evolui a expensas da sua profundidade, e não pode desviar–se em direção a ele próprio. O mistério atrai-o, arrebata-o, todos os factos são mistérios a ter em conta, e não realidades consumadas”.

Mas voltando a Hugo, ao mesmo tempo que estendia a todos os “miseráveis” a condição de um destino na sua história central, não negava o sentido de exclusão dos génios, esses espíritos “dotados de uma observação, de uma imaginação e de uma intuição que os ligam à humanidade, à natureza e ao sobrenatural”. E nesse exaltado poema sinfónico com o qual arranca o ensaio, traça um fosso definitivo entre exemplos de génio absoluto e os tantos talentos que não deixam de enriquecer esta ou aquela tradição, e mesmo de tornar a espera suportável: “Há, de facto, homens-oceanos./ Estas ondas, este fluxo e refluxo, este vaivém terrível, este ruído de todos os sopros, estas negritudes e estas transparências (…) este amargor útil, este azedume que saneia o universo, este sal áspero que tudo deixaria apodrecer se não existisse; estas cóleras e estas quietações, este todo em um, este inesperado no imutável, este prodígio vasto da monotonia inesgotavelmente diversa (…) estes infernos e estes paraísos da imensidade para sempre enternecida, este infinito, este insondável, pode tudo isto estar num espírito, e chama então génio a esse espírito”…

Não é difícil encontrar uma cumplicidade na inquietação que faz de Agustina, entre nós, essa razão “imperiosa, torrencial, a um tempo ácida e lírica, cruel e misericordiosa”. E Eduardo Lourenço, que certa vez, quando lhe foi perguntado o que é a poesia, tendo por perto um livro da Sibila, o abriu, sem nenhuma passagem em mente, como quem consultasse o vento da tarde em Delfos, lendo o que lhe surgiu, logo se encheu de segurança para dizer que o quer que a poesia fosse, teria de ser aquilo. De resto, o ensaísta que há dias celebrou também 96 anos, e que era sem sombra de dúvida um dos raros interlocutores que podia admirar-se sinceramente com esta obra, tomava balanço nos mitos, lembrando “a sempre jovem aventura de Penélope”, para nos dizer que “Bessa- -Luís vai tecendo com uma mão o que destece com a outra. Nada parece guiá–la, na aparência, senão uma fidelidade sonâmbula à vontade de desfiar por sua própria conta um fantástico rosário de ‘relações humanas’, tornadas em suas mãos como elementos de um puzzle variável ao infinito”.

No que toca ao princípio de revolta que faz da poesia o mais urgente dos géneros literários, foi a própria quem, numa carta a Eugénio de Andrade, na hora de dele se despedir, desdobrou essa tentativa que acaba por vencer o próprio horizonte sobre o qual se lança: “O melhor não são os sentimentos nobres das pessoas, mas o ácido prazer de amar seja o que for. Uma longa viagem nos une e nos separa. Nunca trocámos cartas porque essa débil força da confidência esteve sempre para nós fora de moda. Nunca deixámos que as palavras nos dessem lições. As palavras são como caminhos, umas vão dar a qualquer sítio que não nos importa conhecer; outras não servem para nada, e são as melhores”. E depois de tudo isto, remata: “A poesia não é feita de palavras, mas da cólera de não sermos deuses”.

Para falar na obra de Agustina é necessário encará-la como uma insolência absoluta, ainda mais no seu tempo, vinda de uma mulher. Na introdução a uma soberba antologia dos textos de não ficção da autora – Contemplação Carinhosa da Angústia (ed. Guimarães, 2000) –, Pedro Mexia assina um texto notável, uma das mais perfeitas análises do desconcerto que provocou uma obra que se aproveitou da “morte do romance” não como uma fatalidade, mas como a possibilidade de lhe fazer umas estrondosas exéquias, servindo-se deste que se tornou “o género quase hegemónico há 200 anos” como um meio e não como um fim. “Será então necessário admitir que Agustina Bessa-Luís não é essencialmente uma romancista”, admite o crítico literário. “Quer dizer: os seus romances são, sobretudo, textos em roda livre que se vão acomodando ao género”. Mas o embuste é tão mais delicioso e pregnante como mostra Mexia, porque se se pensar que um grande romancista se distingue pela arquitetura que confere às suas obras, então “Agustina não é propriamente uma romancista. O que é tão mais curioso quanto a sua obra pertence sem dúvida à linhagem do grande romance europeu, do Alto Romance (como se diz ‘alta comédia’). Agustina não é uma flaubertiana, porque está tomada de uma espécie de divina impaciência, mas é capaz da mais sublime arte do detalhe”.

Pedro Mexia fala da frustração do “consumidor médio de romances”, esse que “quer sobretudo uma forma de identificação com a matéria ficcional que passa por uma boa dose de ‘realismo’ (o que quer que isso seja) e uma pitada de moralidade (no sentido vicentino)”. E isto porque, ao longo da sua obra, Agustina “prefere sempre as personagens à intriga para depois as abandonar a favor dessa mesma intriga, mas intriga e personagens são quase um álibi”. E chama a atenção para a forma como, nos seus livros, vemos “um espírito imaginativo em ação que se aproveita de todas as liberdades do romance – o romance é o género onde cabe tudo –, mas também o canibaliza a seu bel-prazer”.

Há uma terrível deceção que esta obra concretiza. De cada ponto dela, “pode partir-se para todos os outros sem que haja um círculo de que cada um seja o centro” (Lourenço). A sua intervenção alastra como uma denúncia e expiação do efeito da degenerescência do campo cultural, que tem vindo a perder a sua capacidade de desastre para cair numa convivialidade acomodada ou, no máximo, ressentida. Agustina não tinha o menor pejo em lembrar a condição do artista e do pensador enquanto membro de uma minoria social – é, aliás, esse o título de uma das suas comunicações –, mas há mais de três décadas notava como “a classe dita intelectual se banalizou devido em parte ao mecanismo dos média, que distribui continuamente uma imagem morna desse tipo de cidadão que se quer cada vez mais igual a qualquer outro”. E acrescenta que isto significa que “a sua competência fica reduzida a um simples artifício”, e nota que “aquilo que foi a tradição do intelectual, a sua natureza congénita de opositor, alimentada quotidianamente pelas medidas vigilantes tão caras ao poder, começa a ganhar um bolor de mau presságio”.

É demasiado exigente o génio de Agustina. Toda as armas de sedução de que se serve rapidamente tiram ao leitor as veleidades de se acercar dela como de um entretenimento casual, obrigando a uma troca compreensiva, à expansão da sua própria interioridade, a um efeito de choque ou perturbação. Não há um só momento de tréguas, o seu talento não cumpre com o cerimonial a favor das expetativas desse leitor médio, mas quase se compadece dele, dos “que ficam em terra, os lenços agitados pelo bom vento da costa”. Está na hora em que muitos lenços se agitam e há quase uma alegria de um país que, nas últimas décadas, mais não tem feito do que frustrar qualquer propósito cultural coerente e impiedoso. Um país que se arrumou à morte e julga as coisas ao contrário, não percebendo como é Agustina quem o despede. Ela que perguntava: “Quando será o tempo duma nova cultura?” E respondia: “Quando for o tempo duma não–História, quando não se apascentar a memória como uma repetição de zelos fúteis e perversos”.

A sua existência foi sempre vivida em luta, recusando-se a envergar este luto de uma nação restante, a ir na fila de um um absurdo velório sentimental, uma nação inteira vagueando à beira dos fracassos que erigiu à altura de mitos e que castiga quem quer que se erga, tomando como blasfémia as atitudes realmente desafiadoras, todas as obras que confrontem este modo de viver legado pelas gerações mais velhas às mais novas como um sufoco, um horror diante de toda a impertinência. Assim, quando um jornal francês lhe perguntou “porque escreve?”, ressalvando que esse tipo de pergunta “há muitos anos nos deixou de interessar, a nós, os veteranos”, aproveita para descompor a ingenuidade de quem se aproxima da literatura como de outros passatempos imbecis: “Francamente – porque pensam que eu escrevo? Para incomodar o maior número possível de pessoas, com o máximo de inteligência. Por narcisismo, que é um facto civilizador (…) Escrevo para desiludir com mérito, que é a maneira de se fazer lembrar com virtude”.