Evereste. Tempos negros na montanha mais alta do mundo

Evereste. Tempos negros na montanha mais alta do mundo


Nas últimas semanas, 11 pessoas morreram na subida do Evereste. Sobrelotação gera receios, mas há também críticas ao facilitismo na atribuição de licenças, que constituem uma importante fonte de receitas para os nepaleses. “Os turistas percebem muito pouco de montanha”, diz ao i alpinista português que já esteve no cume. 


Tudo começou com a chegada do ciclone Fani, que atingiu a Índia e o Bangladeche no início de maio. O Governo nepalês foi obrigado a suspender o turismo de montanha por dois dias, noticiou o New York Times. Assim que houve uma melhoria do tempo, as equipas iniciaram a subida. “Se há uma semana [de tempo seguro], o cume fica lotado. Mas às vezes, quando há apenas uma janela de dois ou três dias, fica sobrelotado”, disse à BBC Mingma Sherpa, presidente da Seven Summits Treks, uma agência que organiza expedições às montanhas nepalesas. Com muitos alpinistas à espera de uma segunda vaga de bom tempo e filas no cume, as notícias começaram a revelar-se trágicas: nas últimas duas semanas morreram 11 pessoas na subida da montanha mais alta do mundo (8 848 metros), naquela que é já uma das piores temporadas de que há registo no Evereste.

A sobrelotação está a ser apontada como um dos principais problemas, porém, há quem recorde que problemas respiratórios e avalanches são perigos sempre presentes no montanhismo. Certo é que um número elevado de alpinistas no local levou a um congestionamento na subida ao topo, numa zona crítica. Centenas de pessoas terão ficado cerca de 20 a 30 minutos à espera de vez, o que leva a um gasto extra de oxigénio. As botijas aguentam a subida e a descida, mas não têm capacidade suficiente para permitir que um alpinista fique todo esse tempo à espera. Não é suposto que haja filas perto do cume.

Os congestionamentos ocorreram na chamada zona da morte – nome dado ao troço que se encontra a mais de oito mil metros de altitude. O ministro do Turismo do Nepal, Gyanendra Shrestha, afirmou que os alpinistas chegaram a esperar mais de duas horas para chegar ao topo, retidos numa fila estreita na colina.

Uma das vítimas, o indiano Nihal Bagwan, ficou preso mais de 12 horas no tráfego, dia 23 de maio. Segundo o seu guia, o alpinista não teve energia suficiente para descer. Levado em ombros até ao acampamento, acabou por não resistir.

No tal, o balanço desta temporada de primavera nos Himalaias, no Evereste e no monte Makalu vai já em 18 vítimas mortais. “A partir do momento que morre uma pessoa, já é motivo de preocupação, então 18… Temos de nos perguntar o que se está a passar”, diz ao i o alpinista e piloto da TAP Ângelo Felgueiras, que escalou o Evereste em 2010. “As pessoas não sabem bem o que se está a passar”, acrescenta. “Se for um acidente é uma coisa, como uma avalanche” mas a realidade é que as pessoas estão a morrer por diferentes motivos.

As principais causas de mortes no Evereste são as avalanches, quedas, congelamentos e o mal da montanha – a doença das alturas que leva a dores de cabeça, vómitos e confusão mental. Desidratação, dificuldade em respirar e cansaço fazem parte da lista de adversidades a serem ultrapassadas no gelo. Umas pessoas morrem a subir para o cume mas muitas mais a descê-lo; algumas – menos – nos campos base e outras na preparação das rotas.

“É preciso saber se são alpinistas profissionais ou alpinistas turistas, porque os turistas não têm capacidade de decisão e percebem muito pouco de montanha”, diz Ângelo Felgueiras, piloto na TAP. “É necessário ter um grau de experiência”.

O realizador britânico Elia Saikaly esteve no local e fez um relato dramático. “Não acredito no que vi lá em cima. Morte. Caos. Filas. Corpos pelo caminho e em tendas, no Campo 4. As pessoas que tentaram voltar para trás acabaram por morrer. Pessoas a serem arrastadas. Pessoas a caminhar sobre cadáveres”, contou o autor de The Dream of Everest. Em declarações à CNN, o realizador disse que pensou “O que estou aqui a fazer?” quando se deparou com a confusão. Decidiu voltar para trás.

Questionado sobre como reagiria perante uma fila de espera, Ângelo Felgueiras admite que faria o mesmo. “Não tenho problema nenhum em voltar para trás numa montanha. Não me vou mandar para a morte. Eu não vivi aquilo e voltava para trás”. O comandante comenta ainda que as imagens que já viu são “algo assustadoras”.

Já o australiano Gilian Lee não pôs a hipótese de recuar. Resgatado dia 29 de maio, a 7500 metros de altitude, escreveu no seu blogue, um dia depois, que se esforçou porque o dinheiro já estava investido e porque subir até ao topo era um sonho. Era a quarta tentativa. Gilian não quis desistir mas foi encontrado inconsciente a caminho do cume.

Licenças facilitadas? A sobrelotação sente-se mais do lado nepalês do Evereste, já que a parte tibetana é mais fácil de subir mas tem menos adesão, porque o Governo chinês é mais restritivo nas licenças. Cada licença implica o acompanhamento por parte de um guia (sherpa). Assim, o número de pessoas a escalar é sempre o dobro das licenças atribuídas.

Os congestionamentos levaram a críticas ao Governo nepalês – paira no ar a acusação de que facilitou a segurança em prol do lucro. Neste contexto, alpinistas e guias pediram uma melhor avaliação e controlo na emissão das licenças.

Vendo a última década, de acordo com o New York Times, 2019 é o ano em que foram emitidas mais licenças nepalesas para alpinistas estrangeiros (381) e, 2010 foi o ano com menos licenças (210). Do lado tibetano foram emitidas apenas 140 licenças este ano. Cada licença custa 10 mil euros.

“Quando se emitem licenças não se pedem requisitos” pelo que a responsabilidade deve ser “pessoal e das empresas que preparam as viagens”, afirma Ângelo Felgueiras.

O governo nepalês acaba por “ter de emitir licenças” por se tratar de um “país pobre com poucos meios”, acrescenta o alpinista português, sublinhando que as autorizações levantam menos problemas se forem atribuídas a alpinistas experientes.

O final do mês de abril e todo o mês de maio, quando as condições são menos extremas, são os mais indicados para escalar o Evereste, mas há também que se aventure no outono e no inverno.

Estima-se que 600 pessoas tenham subido o Evereste este ano. Em 2015 morreram 21 pessoas e desde esse ano que a mortalidade registada no montanhismo no Evereste não era tão alta. De 1922 a 2016 morreram cerca de 287 alpinistas no Evereste. O neozelandês Edmund Hillary foi o primeiro a atingir o cume, em 1953.

Terminada a temporada de 2019 com um balanço de 11 mortes, as autoridades turísticas nepalesas não revelaram intenções de restringir o número de licenças, de acordo com as declarações do secretário do Ministério do Turismo e Aviação Civil, Mohan Krishna Sapkota, à Associated Press. A expedição, incluindo guia e licença, tem um custo na casa dos 45 mil dólares. Segundo a Time, a indústria do montanhismo representa uma receita de cerca de 300 milhões de dólares por ano para a economia nepalesa.