João Vasconcelos. “Continuamos muito expostos ao calor em Portugal”

João Vasconcelos. “Continuamos muito expostos ao calor em Portugal”


Investigador defende mudanças no desenho urbano para atenuar o efeito do calor extremo e maior articulação entre as autoridades de saúde e comunidades. Em Viseu, a tradição ajudou a dar respostas: igrejas podem servir de abrigo.


João Vasconcelos é geógrafo do clima e da saúde, investigador do IGOT (Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa) – onde tem colaborado na preparação de planos municipais de adaptação às alterações climáticas – e professor no Instituto Politécnico de Leiria. Acredita que o país está melhor preparado para lidar com períodos de calor extremo, mas há medidas que poderiam fazer a diferença, por exemplo nas cidades.

A onda de calor de 2003 foi das mais fortes registadas na Europa. Estima-se que tenha havido um excesso de 40 mil mortes, 1900 em Portugal. Hoje o país está melhor preparado para lidar com estes fenómenos?

Parece-me que sim. Não sendo só boas notícias, em termos de preparação estamos muito melhor. O nosso sistema de vigilância de calor, o Projeto Ícaro, é dos melhores a nível europeu. Foi um ano de viragem para muita gente. Já se estudava há muito tempo as ondas de calor, mas não se tinha uma noção do impacto que poderia ter numa cidade europeia, por exemplo Paris [durante nove dias a temperatura superou os 35ºC e em todo o país foi calculado um excesso de 20 mil mortes].

Havendo melhor monitorização e sistemas de alerta, em que áreas existem ainda falhas?

Um dos problemas que continuamos a ter é na mitigação da vulnerabilidade da população. É um trabalho que demora tempo, envolve questões de habitação, de comportamento, a configuração das cidades. Continuamos muito expostos ao calor.

Como é que as cidades poderiam ser mais protetoras dos efeitos do calor?

Estamos a caminhar para um paradigma de mudança das cidades. Fala-se muito em concentrar, criar cidades de bairros, em que não seja preciso usar o carro. Tudo isso é positivo. Mas cada vez que concentramos e tornamos as cidades menos arejadas, estamos a fomentar ilhas de calor urbano, há um efeito que agrava os problemas de exposição ao calor. O desenho urbano devia ter em conta os problemas de calor, quer nestes aspetos de concentração, quer na criação de elementos de sombreamento nas praças, pontos de refúgio.

Com que tipo de medidas: mais jardins, mais repuxos, bebedores de água?

Sim. Há trabalhos interessantes no IGOT em que se fez a simulação do conforto térmico no Rossio com painéis amovíveis. No fundo permitem sombra mas não têm de estar permanentemente instalados. Há várias maneiras de, através de vegetação, de pontos de água, aspersores, termos locais mais confortáveis. Por exemplo, no plano de adaptação às alterações climáticas que desenvolvemos com Viseu, houve uma referência a uma tradição que já havia de envolver o pároco. Em picos de calor podem abrir-se igrejas que estão fechadas para servirem de ponto de refúgio.

A ideia é que é preciso envolver não só as autoridades mas também a comunidade?

Sim, as autoridades de saúde têm o seu papel, mas a redução da vulnerabilidade ao calor depende de muitos outros atores que podem ser envolvidos. Um dos aspetos que propusemos em Viseu é que nas saídas da GNR no âmbito do projeto Aldeias Seguras possa ir também um enfermeiro, um elemento de saúde pública, que consiga avaliar se as pessoas estão desidratadas, se estão muito expostas ao calor, se há outras patologias que podem descompensar. Envolver uma equipa maior. Temos uma resposta bem articulada mas é neste tipo de procedimentos que podemos melhorar.

Dados do Eurostat revelam que Portugal é dos países da União Europeia que tem a eletricidade mais cara. Fazia sentido haver apoios para que as pessoas pudessem arrefecer melhor as casas, a mesma questão que se coloca com o aquecimento no inverno?

No inverno há países que já o fazem. O Reino Unido tem subsídios para que não seja por razões económicas que a população passa frio. Não conheço nenhum caso em que existam esses apoios para o calor. Geralmente as pessoas não têm é o equipamento, não existe tanto a questão de não o ligar. No frio ouve-se mais isso: “Não ligo o aquecedor porque é caro”. Mas são questões que podem ser equacionadas. Quando houve os grandes incêndios florestais, alguns municípios promoveram um perdão da fatura da água para as pessoas afetadas. A lógica poderia ser parecida: num pico de calor, se houve uma necessidade acrescida da componente enérgica e havendo um período extremo, podia ser interessante.

O que é mais prejudicial para a saúde, frio ou calor?

Sabemos que atualmente a mortalidade associada ao frio é muito maior do que a associada ao calor. O papel do frio na saúde humana deve sobrepor-se. Mas ao mesmo tempo sabemos que com as alterações climáticas prevê-se uma agudização dos períodos de calor, fenómenos mais frequentes, mais intensos e mais prolongados, portanto o quadro pode não ser sempre assim. Há estudos que sugerem que até a meio do século o frio continuará a ser preponderante, por isso não se pode também pensar que “o calor chegou e o frio acaba”, ou seja descurar as questões de aquecimento das casas e sensibilização da população. Com as alterações climáticas, o calor vai ganhar peso em termos de preocupações de saúde, mas não se pode subestimar o frio. É muito comum as pessoas dizerem que sentem frio porque é inverno, como se fosse uma fatalidade e que não têm de se proteger. No calor a reação é mais imediata.

No ano passado foi um dos autores de um estudo que liga o aumento das temperaturas a mais internamentos por doença mental em Lisboa. Que relação encontraram?

Foi de certa forma surpreendentemente, porque geralmente temos a ideia de que o tempo mais chuvoso e nublado é mais propício a depressões. O que observámos é que, havendo muitos subtipos de doenças mentais, situações de lesões autoinfligidas e consumo de substâncias tendem a aumentar com o bom tempo. Não temos uma explicação, mas estatisticamente encontrámos uma associação entre o aumento da temperatura e o agravamento de algumas doenças mentais, pelo menos em Lisboa. Porventura poderá ser um elemento a que as autoridades de saúde podem estar atentas.

Há outros efeitos nesta relação entre calor e saúde que se destaquem?

Penso que uma ideia que é importante reter é que muitos problemas não resultam tanto dos chamados “golpes de calor”, um calor que é fulminante, mas sim do agravamento de outras doenças cardiovasculares, respiratórias, pessoas que tenham hipotensão. Por outro lado há um efeito estudado que mostra que o excesso de mortalidade está ligado a uma antecipação da morte de pessoas que já estavam fragilizadas. No frio não é tanto assim, o excesso de mortalidade verifica-se também noutros grupos.

Há zonas do país onde a população pareça ser mais vulnerável aos efeitos do calor extremo?

Há um estudo do Instituto Ricardo Jorge, que não cruzou com a mortalidade, mas faz um mapeamento do índice de vulnerabilidade a ondas de calor com base em variáveis sociais, falta de ar condicionado, vegetação e massas de água. Conclui que há uma maior vulnerabilidade no interior, mais pronunciada no sul. Não sabemos se é nestes sítios que morrem mais pessoas, mas é uma indicação importante. Num estudo que estamos a fazer na Área Metropolitana de Lisboa (AML) o que vemos é que há um efeito atenuador nas zonas de exposição mais atlântica.

Os locais com mais brisa marítima.

Sim, com mais humidade. Temos um agravamento do calor intenso nas zonas mais interiores, em Lisboa claramente, mas também no interior da Península de Setúbal. Sabemos que nas cidades, no geral, o fenómeno é agravado, nomeadamente no período noturno.

Há muitas projeções que apontam para ondas de calor mais intensas. O que podemos esperar?

Há um estudo muito interessante do Joint Research Centre (JRC), em Itália, que se baseia na onda de calor em 2010 em Moscovo, que, tal como a de 2003, foi muito intensa. Estimam que ondas de calor daqueles género haverá uma probabilidade de acontecerem no futuro a cada um a dois anos na Europa. No fundo, não havendo certezas, temos de planear e estar melhor preparados. 

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