Crioulo Quântico. Panu di pinti, pánu di téra, estes panos falam

Crioulo Quântico. Panu di pinti, pánu di téra, estes panos falam


Em Crioulo Quântico, a artista e realizadora Filipa César apresenta, no Espaço Projeto da Gulbenkian, uma instalação e um filme-ensaio sobre a crioulização como, muito para lá da linguagem, uma forma de pensar o mundo.


Não são falam como falam mais do que se julga. Tempos houve em que difícil seria encontrar na Guiné-Bissau uma casa que não tivesse um algodoeiro no quintal. Virá essa informação entre uma das muitas histórias contadas, e sobre as quais um conjunto de convidados refletiram, em Berlim, na performance Looming Creole – o primeiro momento de Crioulo Quântico, a instalação/filme-ensaio que Filipa César apresenta a partir de hoje no Espaço Projeto do Museu Gulbenkian.

Hoje, conta-nos a artista e realizadora que é com poliéster importado da China que se tece o panu di pinti. E pode até ser. “Mas a tecedura permanente do crioulo e dos seus fios recorda as ressonantes materialidades da plantação. A tradição oral e as mães tecedeiras do código binário formam uma ponte que se desvia da violência das palavras escritas nos relatos dos navios negreiros”.

O código binário – esse mesmo na base do qual se desenvolveu a tecnologia informática – que, recorda Leonor Nazaré, comissária da exposição, está “mais próximo do princípio da tecelagem do que do ato da escrita”. Basta pensar que foi no contexto da produção têxtil que se desenvolveram os primeiros cartões perfurados. Daí que, a partir do desafio que lhe foi lançado pela Haus der Kulturen der Welt de Berlim para desenvolver uma obra para o projeto Das Neue Alphabet (o novo alfabeto) e onde Filipa César apresentou, em janeiro passado, Looming Creole (o primeiro dos três momentos expositivos do projeto que, depois de Lisboa, viajará até ao Tabakalera – Centro Internacional para a Cultura Contemporânea, em San Sebastián). Uma obra a marcar o seu regresso à Guiné-Bissau, onde vem trabalhando ao longo dos últimos anos.

Não exatamente a mesma Guiné de Spell Reel, a sua primeira longa-metragem, que documentou o processo de recuperação e preservação dos arquivos do Instituto Nacional do Cinema e do Audiovisual da Guiné-Bissau. Esta será a Guiné dos fisiais (tecelões, em crioulo guineense), que continuam até hoje a tecer esse tal panu di pinti (pano de pente, assim designado por ser produzido através da ténica de penteação). Pánu di téra, em Cabo Verde, traduzido para português como “pano da terra”, literalmente, numa evocação dos filhos mulatos de mulheres negras com lançados (excluídos ou rejeitados; ou seja, os portugueses condenados a trabalhos forçados que, desafiando a coroa portuguesa, apoiaram em parte a resistência dos povos autóctones à ocupação portuguesa, a partir dos séculos XV e XVI).

Importante será uma leitura de Sistema Operativo Kriol – Relatos da primeira parte da Passagem do Meio, um texto escrito por Filipa César no verão passado, em Berlim, disponível em Crioulo Quântico – assim como, para consulta, um conjunto de bibliografia que ajudará a escavar mais fundo na proposta – o processo de crioulização entendido para lá da questão da linguagem. E vários desses panos que no filme vemos ser tecidos, mais alguns objetos da Guiné-Bissau. Nesse texto, Filipa César chamará atenção para como cada pano possui uma frente e um verso. O verso do tecido que fica como “o não-dito num discurso que nunca é fechado ou unívoco.”

Como o crioulo. “Os crioulos são linguagens que estão entre os pidgin – linguagens que são criadas quando duas pessoas têm que fazer um negócio e não falam a mesma língua – e as línguas. Inventa-se um pidgin, que mistura as duas, e o crioulo é a linguagem falada pelas crianças que são filhas dessas pessoas que falavam o pidgin, essas linguagens de negócio. É por isso que a palavra vem de ‘cria’, ‘criar’. E são essas crianças que completam a língua, ao criarem uma gramática, que no pidgin não existe”, explica ao i Filipa César. “Ao mesmo tempo, os crioulos ainda não estão fixados. Como esse processo ainda não foi feito na Guiné-Bissau – houve várias tentativas, mas ainda não foi acabado – a língua continua a ser um crioulo, ainda não é guineense, o que faz com que esteja em permanente transformação. Nesta dificuldade de fixar a matéria está também essa qualidade quântica. Sempre que se tenta fixar alguma coisa, está-se a alterá-la. Há um processo quase impossível no fixar o conhecimento.”

Como na tecelagem. E isso explicará Zé Interpretador, um dos tecelãos retratados em Crioulo Quântico. Entre imagens de panos, plantações de algodoeiros, teares, as ruas da Guiné-Bissau, e padrões. Padrões que se criam e se repetem, copiam, transformam, porque nesta arte não há autor. Mais importante serão as mensagens de resistência social e política cifradas nestes panos – di pinti ou di téra – que no período colonial não demoraram a transformar-se em moeda de troca nos Rios da Guiné. “No encontro violento entre portugueses e guineenses, há uma relação entre o auge da tecelagem, e a massificação da plantação do algodão, e o auge do tráfico negreiro.”

Por esta altura, um pano não poderá já ser apenas um conjunto de fios tecidos – nas palavras de Leonor Nazaré, estes panos falam. Filipa César vê-o como um “interface”, e explica: “O pano foi originalmente criado para as mortalhas com que se entregavam os corpos de volta à natureza, numa tradição que vem já do Egito e chega à Guiné-Bissau. É um interface entre o mundo real, o mundo animal e o mundo sagrado.”