Lá em casa éramos seis. Nessa altura não éramos muitos nem éramos poucos, estávamos na média. Nunca olhámos para nós como uma família numerosa. E, quando a primeira casou, achámos que a casa estava vazia, até descobrirmos que podíamos tomar posse de tudo o que ficava vago: o quarto, o turno de casa de banho, o lugar à mesa, a dose que ficou por servir e até o dinheiro que – apesar de continuar a não sobrar – podíamos tentar cravar aos pais.
Sermos seis dentro da mesma casa foi uma carga de problemas. Acresce que, quando estávamos todos lá em casa, não defendíamos propriamente o “Peace and Love” tão em moda no mundo. Resultado: ficámos com marcas para a vida, gravadas no corpo, na alma e no coração.
Destaco seis:
1 – Sabemos tudo sobre técnicas de autodefesa física e psicológica. Estratégias que nos livraram de passar algumas temporadas num hospital ortopédico ou psiquiátrico e que constituíram para todos um bom treino para os desafios da vida adulta. Nenhum de nós vira a cara a um bom desafio.
2 – Somos ótimos a discutir e sabemos, como ninguém, usar o volume e os argumentos para nos fazermos ouvir. Aprendemos a gostar de uma boa troca de argumentos, a lutar até ao fim pelas nossas razões, mas também a aceitar perder sem amuos. Amuar era mesmo a grande vitória que podíamos entregar ao adversário e isso é que estava completamente fora de questão.
3 – Aprendemos a sobreviver às intempéries da vida e, até agora, não nos temos dado mal. Lá em casa, os mais velhos, só por o serem, tinham mais direitos e melhor mesada. O trabalho era distribuído por todos sem exceção. Os castigos e restrições nunca duraram mais do que o tempo de aprendermos a lição. A liberdade era à medida da responsabilidade. E assim organizámos a nossa (pequena) sociedade: justa, mas variada. Hoje somos todos muito diferentes uns dos outros. Não teria sido possível, se tivéssemos tido todos o mesmo tratamento.
4 – Aprendemos a estar felizes com pouco. Percebemos desde cedo que a vida animada lá de casa tinha um preço. E alguns de nós fomos cometendo ao longo da adolescência a atividade criminosa do trabalho (dito) infantil. Foi bom. Aprendemos a fazer de tudo e ainda conseguimos o objetivo de poder comprar “aquelas” calças de ganga suplementares ou passar “aquela” semana de férias com os amigos, longe da concorrência familiar.
5 – Sabemos fazer lobbying, contornando as regras nacionais que o proíbem. Se estamos convencidos da bondade de uma causa, ninguém nos cala. Neste particular, a teimosia do irmão do meio ensinou-nos muito. Conseguia passar uma tarde inteira a repetir: “Posso?” “Não”. “Não, porquê?” “Porque não”. “Porque não, porquê?” E assim ficava até ouvir o desejado sim do massacrado progenitor que lhe caía em sorte.
6 – Sabemos praticamente tudo sobre a maior qualidade nacional: o desenrascanço. Raramente havia tempo ou espaço para “mariquices”. Quando caía uma nódoa no sofá ou na alcatifa branca, era urgente disfarçar a coisa, para evitar o drama maternal. Quando a mesada acabava antes de termos comprado o bilhete para aquele filme especial, era necessário encontrar a “narrativa” certa para levarmos a carta a Garcia. “Não sou capaz não existe!” – foi a frase que crescemos a ouvir do nosso pai, também ele um irmão de oito.
Posso dizer que tive uma infância inesquecível e ainda trago no corpo algumas marcas desse tempo.
Ainda hoje há calor nos nossos encontros e, ainda que nem sempre haja peace, à nossa moda há love. Não trocamos elogios mútuos e aposto que os meus irmãos devem estar a ler este texto e a pensar que estas coisas não são para nos dizermos uns aos outros, muito menos em público. No fundo, achamos que não é preciso dizer porque é por demais evidente e, além disso, é uma pieguice.
E a lição maior que aprendemos é que somos únicos e irrepetíveis como somos, porque nos temos uns aos outros, como um corpo que precisa de todos os seus membros para se sentir completo. À semelhança da Igreja, que foi o modelo que os nossos pais seguiram para construírem a sua família.
É por isso que, neste Dia dos Irmãos, ponho o orgulho de parte e agradeço aos cinco por ser quem sou. Não é lá grande coisa, dirão alguns, mas foi o que vocês ajudaram a fazer.
Obrigado aos cinco e espero que agora reconheçam o meu valor. Senão, também são vocês que ficam mal.
Já agora, porque dia 31 de maio é Dia dos Irmãos, lembro e pergunto: alguém disponível para oferecer um almoço aos manos?