Acreditem connosco


A melhor e mais bela ideia que o homem político já teve, a nossa comunidade democrática de vida e de destino, está em dificuldades.


Justiça global: o que é? Como chegamos lá? É por estas perguntas que as Conferências do Estoril nasceram e cresceram em Cascais. Têm o nosso ADN de tolerância, pluralismo e diálogo franco. Mas as conferências já não são nossas há muito tempo. Elas são dos jovens e dos ativistas. Dos chefes de Estado e dos cientistas. Dos famosos e dos anónimos. Dos de esquerda e dos de direita. Dos do norte e do sul. Elas são do mundo.

Ou, dito de outra forma, as conferências projetam aquilo que, em Cascais, achamos que Portugal pode ser e dar ao mundo. Um espaço de liberdade, de debate e de mediação da nossa humanidade comum.

Mas as conferências são mais do que isso. São das pessoas. São dos que acreditam.

Dos que acreditam no poder transformador dos indivíduos.

Dos que acreditam que o somatório de pequenas ações locais pode ter um grande impacto global.

São, verdadeiramente, de todos aqueles que acreditam que o mundo pode ter o governo das nossas esperanças comuns no lugar do império das nossas diferenças.

O programa das conferências, que termina hoje, insta-nos a encontrar caminhos para uma ideia de justiça global e esperanças comuns.

Estamos numa semana particularmente difícil para falar de esperanças comuns.

Os povos da nossa união escolheram o mais antieuropeu de todos os parlamentos da nossa história.

A melhor e mais bela ideia que o homem político já teve, a nossa comunidade democrática de vida e de destino, está em dificuldades.

Isto não acontece por acaso.

A paixão imoderada pelos movimentos populistas e radicais é apenas o último sintoma de uma doença prolongada. Uma doença que se vem agravando há pelo menos uma década, que passou pelos estádios iniciais do colapso do centro político e da rejeição dos protagonistas políticos moderados e que agora prossegue com o desmantelamento de alguns pilares da globalização.

A conjugação destes sintomas degradará ainda mais a ideia liberal de uma comunidade de povos capazes de partilhar a mesma ideia de paz e justiça.

Estarão as pessoas a perder a fé na democracia?

Há estudos que suportam essa tese. A questão que deve inquietar-nos é o porquê desse desencanto com o regime representativo.

Apontaria cinco razões para a recessão democrática.

Primeira razão: as pessoas medem o valor da democracia pelos parâmetros errados.

As preocupações dos cidadãos europeus estão concentradas em três níveis: imigração; segurança/terrorismo; economia e emprego.

A ausência de respostas por parte dos governos a estas e outras matérias é tida como um falhanço do sistema democrático quando, na verdade, é um falhanço de opções políticas. Não por acaso, são estas as áreas mais cavalgadas pelos populismos.

Quase todos os países prósperos são democracias. Mas nem a prosperidade, nem a segurança, nem o controlo de fronteiras validam a proposição da democracia.

O que é produto direto da democracia é o primado da lei e da Constituição, o respeito e a defesa dos direitos humanos, a liberdade de iniciativa e de associação, a liberdade de voto, de informação ou de expressão. Ou, simplesmente, a liberdade de ser feliz respeitando a lei. Perdemos isso de vista nos últimos anos.

Segunda razão, e nem sequer preciso de elaborar muito sobre ela, é que a democracia é condescendente com as formas não democráticas de governo. Muitos quadros constitucionais europeus contêm, em si mesmos, as sementes da destruição democrática.

Terceira razão: como comunidade pioneira na federação dos povos, a Europa tarda em mostrar um sentido e uma visão para os cidadãos.

Todos os povos e nações da nossa união vivem melhor dentro do que fora da Europa. Todavia, ninguém em Bruxelas é capaz de contar a nossa extraordinária história comum. Em junho de 1963, um presidente americano vinha à Europa dizer: “Ich bin ein Berliner”. Em 2019, não é fácil encontrar um britânico que diga “eu sou da União Europeia”.

Quarta razão: as pessoas perderam a confiança nas instituições e nos seus concidadãos. A democracia não é um mercado. Mas se nem os mercados, o paraíso do individualismo, vivem sem confiança, como é que as democracias que trabalham para o bem comum podem fazê-lo?

Quinta e última razão: é preciso acabar com a duplicidade moral. Uma ditadura não passa a ser boa em função do seu sinal político.

Uma ditadura é uma ditadura é uma ditadura. E há quem, no afã de defender a ideologia ou proteger a tática, ainda não tenha percebido a insustentabilidade da sua posição.

A ideia de justiça global depende de uma democracia global. E se há um espaço por onde podemos começar a trabalhar as duas ideias, de democracia e justiça globais, esse espaço é a Europa.

Recordamos nestas conferências, que hoje terminam, os 30 anos da queda do Muro de Berlim.

Esse episódio oferece-nos uma lição intemporal.

É que não há construção humana ou regime político que consiga resistir à força da liberdade e da justiça. A vontade de poder não vale nada contra o poder da vontade.

Se queremos um mundo mais justo, temos de olhar por todos aqueles que foram excluídos da globalização e garantir a todos uma existência com dignidade.

Se queremos um mundo mais justo, temos de garantir que a geração dos nossos filhos herda dos seus pais um planeta mais sustentável.

Se queremos um mundo mais justo, é tempo de combater as desigualdades e as assimetrias, a corrupção, a economia da ganância e a exploração do homem.

Se queremos um mundo mais justo, e sim, nós queremos e acreditamos num mundo mais justo, temos a obrigação de levar a democracia e a liberdade a todos os lugares onde haja um homem ou mulher que queira quebrar os grilhões.

Nós queremos e acreditamos num mundo mais justo.

E acreditamos que queiram acreditar connosco.

Escreve à quarta-feira