Era assim até agora a definição de burnout: fruto de dificuldades na gestão da vida, um “estado de exaustão vital”, lê-se na 10.ª versão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (IDC na sigla internacional), o manual de referência da Organização Mundial de Saúde, em vigor desde os anos 90. Os trabalhos para atualizar a lista de doenças que serve de referência a nível mundial começaram há mais de uma década e no último sábado houve luz verde dos Estados Membros para que seja adotada uma nova versão, a 11.ª, que entrará em vigor em janeiro de 2022. São algumas as novidades, mas o relevo dado ao burnout é um dos destaques. Passa a ser considerado um problema de saúde relacionado com o trabalho, caindo a expressão noutros contextos em que a exaustão física e emocional não tem raízes no emprego ou na falta dele.
“Burnout é um síndrome conceptualizado como o resultado de stress crónico no local de trabalho que não foi gerido com sucesso”, dita a nova definição. “É caracterizado por três dimensões: 1) sentimentos de esgotamento de energia; 2) o aumento da distância mental em relação ao trabalho ou sentimentos de negativisimo ou cinismo relacionados com o trabalho 3) e redução da eficácia profissional. O burnout refere-se especificamente a fenómenos no contexto ocupacional e não deve ser aplicado para descrever experiências noutras áreas da vida”.
Para o bastonário dos Médicos, trata-se de uma valorização de um problema de saúde cada vez mais atual, que não tem tido atenção suficiente por parte dos responsáveis políticos. “É um passo positivo para melhorar o tratamento e também a prevenção”, diz ao i Miguel Guimarães, defendendo que o reconhecimento do burnout na lista de doenças da Organização Mundial de Saúde poderá também funcionar como uma forma de pressão para que o Governo tome medidas.
Na semana passada, a Ordem dos Médicos anunciou a criação de um gabinete para apoio a médicos que estejam a passar por situações de exaustão ou que sejam vítimas de violência, isto depois de serem conhecidos os resultados de um inquérito que incluiu 9 mil clínicos e expôs a dimensão do problema entre os médicos portugueses. O estudo conclui que 66% estão num nível elevado de exaustão, 40% apresentam sinais de despersonalização – atitudes de descrença ou indiferença associadas ao burnout – e cerca de 30% referem diminuição da realização profissional.
“É um dos estudos com maior amostra a nível internacional. Quando existem estes indicadores, o que está em causa é a segurança no trabalho, tanto do profissional como a segurança clínica do doente”, diz Miguel Guimarães, adiantando que desde que foi anunciada a criação do Gabinete de Apoio ao Médico já receberam vários contactos. Para o bastonário, deveria haver um estudo mais aprofundado desta realidade em Portugal, em particular na Saúde, com uma análise que envolvesse todos os grupos profissionais e juntasse resultados que têm sido obtidos de forma isolada. “Neste momento era importante que o Ministério da Saúde estudasse o fenómeno e implementasse medidas de apoio a estas pessoas. Não temos dúvidas de que a principal causa de muitas destas situações é a elevada pressão que se coloca sobre os profissionais, sobretudo nos médicos e enfermeiros, que estão na linha da frente da resposta”, diz Miguel Guimarães, acreditando que a medicina no trabalho poderá ter uma intervenção reforçada nesta área. “Tem estado mais focada nas questões de saúde pública, de doenças infecciosas, quando esta é uma realidade cada vez mais visível.”
Em Portugal, além dos estudos na classe médica, o burnout já foi quantificado entre os enfermeiros. Um trabalho divulgado em 2016 e que juntou a Universidade do Minho e a Ordem dos Enfermeiros concluiu que um quinto dos 2302 enfermeiros inquiridos tinham sintomas de exaustão.
O tema, que tem vindo a ser objeto de cada vez mais análises a nível nacional e internacional, também já foi estudado entre os professores portugueses. O estudo pedido pela Fenfrop à Universidade Nova de Lisboa, coordenado por Raquel Varela, concluiu com base numa amostra de cerca de 15 mil docentes que 60% sofrem de exaustão emocional. Quatro em cada dez docentes apresentavam baixos índices de realização, sendo os gatilhos apurados também sistémicos. “Intensa falta de autonomia, pouca influência nos currículos e na gestão da escola”, eram alguns dos motivos apontados para a baixa realização, destacou na altura a investigadora, a par da sensação de um trabalho muito vigiado e repetitivo.
Outras mudanças
Em declarações à AFP, Tarik Jasarevic, porta-voz da Organização Mundial de Saúde, sublinhou ontem que esta é a primeira vez que o burnout tem esta classificação no IDC.
O reconhecimento do distúrbio associado aos videojogos como doença é outra das novidades, algo que já tinha sido anunciado pela OMS no ano passado mas que também só no último sábado, com a aprovação da nova versão por parte dos Estados Membros, passa a ser oficial. Na nova definição entra na categoria de doenças causadas por comportamentos aditivos e define o distúrbio de videojogos como um padrão recorrente de comportamento de jogo em que é dificuldades de controlo, uma prioridade cada vez mais dado ao jogo ao ponto de limitar outras atividades e interesses do quotidiano e a continuação do comportamento mesmo quando existem consequências negativas.
Outro marco da revisão, anunciado também no ano passado, é o fim da classificação da transexualidade como doença mental, passando a haver uma definição de “incongruência de género” na categoria de condições relacionadas com a saúde sexual. Uma decisão que a OMS espera que venha a diminuir o estigma, sem fechar a porta a quem sinta que precisa de ajuda médica. “Não há provas de que uma pessoa com um transtorno de identidade de género tenha automaticamente um transtorno mental, embora aconteça muito frequentemente sofrer de ansiedade ou depressão”, disse em junho do ano passado Shekhar Saxena, director do departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da OMS.