Quando recorremos a uma plataforma como a Uber ou a Lyft é difícil de imaginar que o condutor que nos leva possa ter sido responsável por crimes de guerra em algum ponto da sua vida. Mas foi este o caso de Yusuf Abdi Ali, um antigo militar da Somália, que trabalhava para ambas as plataformas na Virgínia do Norte e que foi condenado por um tribunal do distrito de Washington a pagar 500 mil dólares (448 mil euros) a uma das vítimas que torturou, o cidadão somali Farhan Mohamoud Tani Warfaa.
Os muitos crimes de que Ali é acusado terão ocorrido no final dos anos 80, quando era comandante da 5.ª brigada do exército somali, durante a guerra civil que devastou e continua a devastar o país. Nesses tempos, Ali dava pelo nome de “Coronel Tukeh” (corvo), como era conhecido pelas populações que aterrorizou, durante a brutal campanha governamental contra os muitos clãs rebeldes, em particular no norte da Somália. Warfaa, um membro do clã Isaaq – um dos maiores do país – testemunhou perante o tribunal norte-americano ter sido uma das vítimas do coronel, quando tinha apenas 17 anos. O jovem estava a pastorear o gado da família, perto da sua quinta, quando foi apanhado pelas tropas de Ali numa detenção em massa, devido ao desaparecimento de um camião-cisterna de água. Durante semanas, os soldados espancaram Warfaa, torturando-o usando uma técnica chamada “MIG”, em que a vítima é deixada nua durante horas, com pés e mãos atados atrás das costas, numa posição dolorosa que lembra a forma dos caças MIG utilizados pela força aérea somali.
Ali terá estado presente durante parte dos procedimentos, tendo disparado várias vezes à queima-roupa sobre o jovem, deixando-o quase morto e dando ordens para que fosse enterrado. Warfaa terá conseguido escapar quando os soldados encarregados da tarefa se aperceberam de que estava vivo, acabando por aceitar um suborno da família de Warfaa para o deixar fugir.
Este é apenas um dos vários crimes de guerra que Ali foi acusado de ordenar, num documentário de 1992 da Canadian Broadcasting Corporation, em que várias testemunhas contaram ter assistido a torturas, assassinatos e mutilações ordenadas pelo coronel. “Dois homens foram apanhados e atados a uma árvore. Deitaram gasolina sobre eles e queimaram-nos vivos”, contou uma das testemunhas, enquanto outro habitante da mesma aldeia denunciava: “Ele apanhou o meu irmão. Atou-o a um veículo militar e arrastou-o atrás dele… desfê-lo em pedaços”. Na altura da emissão do documentário, Ali já tinha escapado da Somália e trabalhava como segurança em Toronto – de onde foi deportado por “sérios abusos dos direitos humanos”, segundo documentos judiciais. Entretanto, os EUA também já haviam iniciado um processo semelhante contra o criminoso de guerra, não sendo claro como este conseguiu reentrar em 1996 no país, onde também trabalhou como segurança no aeroporto de Dulles, perto de Washington.
A condenação de Ali já levou ao seu despedimento da Uber e da Lyft, algo que impossibilita o pagamento da indemnização que deve à sua vítima, segundo o seu próprio advogado. O ex-coronel foi condenado ao abrigo da Lei de Proteção de Vítimas de Tortura, que proíbe tortura tanto nos EUA como fora do país. Também não se sabe como os vários processos contra Ali não foram sinalizados na verificação de antecedentes das plataformas onde trabalha há pelo menos 18 meses – desfrutando até de uma pontuação de 4,89 em cinco na Uber, dada pelos seus passageiros. A descoberta foi feita durante uma investigação da CNN, divulgada esta semana, em que os jornalistas viajaram com Ali como condutor. Questionado sobre o processo de seleção, o antigo coronel assegurou que “eles querem uma verificação de antecedentes, só isso”.
O assunto tem levantado questões sobre quão aprofundado é o escrutínio deste tipo de plataformas. Apesar de Ali não ter sido então condenado, uma breve pesquisa num motor de busca revela inúmeras das alegações de crimes bárbaros cometidos por ele. A Uber afirmou à BBC que as suas verificações são subcontratadas à empresa Checkr, que explicou que, “segundo a lei federal, as empresas que processam investigações de antecedentes baseiam-se em registos jurídicos e não em fontes não confirmadas como pesquisas da Google”.