Sentado num muro baixo, a luz do sol refletida no pelo negro brilhante, olhos verdes entreabertos a fitar a paisagem, pose elegante e ar satisfeito: é assim que vemos pela primeira vez Camões, um dos gatos da colónia que existe no Liceu Camões, em Lisboa, há já oito anos. Dificilmente podia estar melhor: está a receber carícias de um aluno que se prepara para ir para casa, no seu território já muito bem delimitado, junto ao ginásio da escola secundária – onde, momentos antes, tinha estado deitado numa cadeira. Não muito longe, na horta, costuma andar a gata Ninoca e o seu filho. Já no extremo oposto do pátio, junto ao parque de estacionamento da escola, há uma gata siamesa de cor clara e três gatos tigrados. Sem um local em particular adotado, um gato amarelo tigrado costuma vaguear por todo o liceu. Há cerca de dois meses, contudo, a colónia cresceu: dois gatos pretos – entretanto carinhosamente batizados entre os funcionários de Preguiça e Soneca – foram realojados no liceu no âmbito do Patrulha Gato, um projeto inédito por cá e na Europa, que envolve a Câmara Municipal de Lisboa, a Provedoria dos Animais de Lisboa, a Casa dos Animais de Lisboa e a Associação Animais de Rua. O Preguiça e o Soneca foram os protagonistas do projeto-piloto, que decorreu no liceu Camões.
“O projeto surgiu de uma recomendação que emiti à Câmara Municipal de Lisboa (CML), em que propus um programa que é inspirado naquilo que descobri nas minhas pesquisas e que pretende resolver o problema de muitas colónias de gatos em Lisboa, que ficam em risco por vários motivos: ou porque a vizinhança não as recebe bem, ou porque estão numa zona onde se vai iniciar uma obra, ou porque há conhecimento de ameaças de envenenamento e de maus-tratos. Então, é preciso encontrar locais onde estes animais possam ser melhor recebidos e bem tratados. E o que se pode fazer é aquilo em que a associação Animais de Rua tem o seu expertise: o realojamento dos animais num novo destino”, explica ao i a Provedora dos Animais de Lisboa, Marisa Quaresma dos Reis. Ana Duarte Pereira, da Animais de Rua, complementa: “Há muitos gatos, quer porque foram encontrados no motor de um carro e não se sabe de onde é que eles vieram, quer porque estão a ser alvo de maus tratos, ameaça de envenenamento ou por causa da pressão imobiliária, que não podem voltar ao seu local de origem”.
O realojamento, contudo, tem muito que se lhe diga. “Primeiro, há vários requisitos: é necessário um local sossegado, onde não haja acesso de estranhos, onde se possa colocar uma jaula sem riscos de segurança – porque os animais estão à mercê de que possa ali passar. Depois, os animais são então colocados numa jaula com caminhas, uma caixa com areia, são alimentados durante três ou quatro semanas só com comida húmida, e as pessoas têm de falar com eles para se habituarem ao novo local. Uma vez passadas essas semanas, a porta da jaula é aberta, eles saem, mas continuam muitas vezes a comer ali e a ir à areia e àquele local, que ainda veem como o seu porto de abrigo”, explica Ana Duarte Pereira. Cerca de três semanas depois de terem saído da jaula, tanto o jovem Soneca como o igualmente jovem Preguiça – que Ana descreve como tendo, respetivamente, “um, um temperamento muito tímido, e outro, muito extrovertido” – continuam a voltar ao local inicial, junto ao parque de estacionamento da escola, para dormir. Por estes dias, a jaula ainda lá está, mas em breve vai ser substituída por um ponto de alimentação. “O objetivo é que eles continuem a ter uma relação com aquele sítio”, continua a responsável da Animais de Rua.
O modelo difere da solução de adoção porque, para os gatos destinados ao realojamento, o confinamento pode mesmo ser prejudicial e neste modelo andam livres. Para as instituições que venham a ter interesse – que podem ser tão diferentes como entidades públicas ou privadas, empresas, condomínios, etc.. – a solução de realojamento acaba por ter outra vantagem, além da criação de laços com o animal. “A grande vantagem é que estes animais têm um efeito interessante, que no fundo nos permite regressar um bocadinho no tempo e a práticas verdes de controlo de ratos, que é uma espécie que anda sempre connosco: o realojamento é uma forma verde de afastar estes roedores, que apesar de tudo têm um papel importante na cidade e são eles que zelam pelo equilíbrio do nosso subsolo e assim mantemos os ratinhos onde eles têm de estar – lá em baixo, a trabalhar, para que as cidades continuem a sua atividade normal”, assinala a Provedora dos Animais de Lisboa. A ciência atesta o efeito: de acordo com Marisa Quaresma dos Reis, inúmeros estudos demonstram que os ratos desaparecem porque são dissuadidos pela presença do predador natural, o gato. “Ainda assim, apesar de o gato ser o predador natural do rato, talvez por estar já demasiado urbanizado, alimentado, esterilizado, perde algumas competências de predação. Não quer dizer que não ocorra algum confronto natural, depende da natureza do animal, mas essencialmente os ratos desaparecem pela simples presença do gato. Portanto, é provável que as queixas de ratinhos nos locais onde eles existem diminuam drasticamente. É uma situação em que todos ganham”, acredita a provedora.
No liceu Camões, mais do que pelo problema dos ratos – uma vez que, enquanto escola, a instituição é obrigada a fazer desinfestações regularmente –, a Patrulha Gato foi recebida pela oportunidade que cria de estabelecer laços com os animais, proporcionando, ao mesmo tempo, um local de abrigo aos dois gatos. “Os alunos adoram os gatos e os gatos são sempre muito bem recebidos aqui. Eles conhecem os gatos pelos nomes. O Camões, que é o mais sociável, passam por ele e brincam com ele”, relata ao i a subdiretora do liceu, a professora Lídia. A professora Ângela, adjunta da direção, acrescenta: “Além de se criarem laços, é uma forma de educar e de ganhar respeito pelos animais. Muitos destes jovens nunca tiveram um animal em casa”.
Entre os estudantes, parece haver consenso e nenhuma objeção a apontar. Sentados num dos bancos em madeira do pátio do liceu, Miguel, 17 anos, confessa gostar “bastante” dos gatos que passeiam pelo liceu, tal como Beatriz, de 18. “Não me incomodam nada, andam por aí e passear e até lhes faço festinhas. São amigáveis”, afirma. O colega Rafael, com menos um ano, concorda: “o Camões em especial pede festinhas, é a mascote daqui. Os outros fogem, não me incomodam nada”. Já Joana, da mesma idade, revela-se menos à vontade com a presença dos felinos – “não tenho muito contacto porque também não faço por isso, mas não me incomodam”, afirma.
O futuro do projeto
Terminado o projeto-piloto, a Patrulha Gato prepara-se agora para aumentar a sua área de intervenção. O sucesso ultrapassou mesmo fronteira e o projeto chegou lá fora: à Provedoria tem chegado feedback de vários países, curiosos para saber mais sobre a medida, como Espanha ou a Suécia. “Não estávamos à espera, mas curiosamente tivemos imensos pedidos de muitas pessoas, muitos bairros, instituições, que acharam a ideia interessantíssima, não tanto só pela questão dos ratos mas também pelo facto de lhes poderem proporcionar alojamento. É simpático ter os animais. Tem tudo para ter sucesso”, acredita Marisa Quaresma dos Reis. A procura do projeto por vários interessados aponta nesse sentido. “Nós temos vindo a receber outros contactos de pessoas que se dispõem a receber gatos. E há muitas possibilidades: podem ser particulares com jardins, pode ser um condomínio, pode ser uma empresa ou mesmo uma instituição pública como esta. Animais a precisar de realojamento nós temos, só precisamos de pessoas disponíveis para os acolher”, apela Ana Duarte Pereira.
Colónias em Lisboa
A colónia do liceu Camões é apenas uma das cerca de 1000 que estão identificadas e registadas em Lisboa. Ao contrário do que acontece na vida selvagem, contexto em que os felinos não formam colónias, “os gatos em ambiente urbano juntam-se em torno de um ponto de abrigo e de alimentação. Pode ser propositado – aquela velhinha que vai dar comida ou os gatinhos que apareceram aqui na escola e que são alimentados pelos funcionários – ou não propositado, como as traseiras de um restaurante onde os caixotes estão abertos. E acabam por ter um ou mais cuidadores, pessoas comuns da zona. As colónias são construções iminentemente humanas”, elucida Ana Duarte Pereira.
Para Marisa Quaresma dos Reis, as colónias de gatos têm um papel fundamental na sensibilização da sociedade. “É importante que as pessoas percebam que nós vivemos num ecossistema em que existem humanos e outros animais e temos de aprender a conviver de forma pacífica. O projeto Patrulha Gato é um passo nesse sentido, é uma forma de tentar harmonizar os animais que vivem na cidade e fazem parte dela com as pessoas, porque se os gatos passarem a viver em sítios onde são desejados e acarinhados, é melhor para eles e para nós. No fundo, é isso que queremos na Provedoria: tornar Lisboa uma cidade amiga dos animais e também zelar pelo bem-estar das pessoas, através da sensibilização e da educação. Medidas como este projeto são realmente muitos importantes para esse trabalho”.