A Argentina susteve a respiração enquanto a ex-Presidente Cristina Fernández Kirchner se sentou no banco dos réus, esta terça-feira, dando início ao primeiro dos vários julgamentos de corrupção em que está indiciada. Kirchner consegue continuar a desfrutar de grande popularidade no país, apesar das mais de dez acusações que enfrenta, cinco delas com mandados de captura pendentes que não são efetivados devido à sua imunidade enquanto senadora.
Atravessando um enxame de jornalistas que a questionava, Kirchner entrou sorridente nas instalações judiciais para enfrentar acusações de associação ilícita e administração fraudulenta, relativas a 51 contratos irregulares de obras públicas que terão favorecido Lázaro Báez – um empresário próximo de Néstor Kirchner, o falecido marido de Cristina, que a antecedeu no cargo de Presidente.
O valor total das obras, realizadas na Patagónia, no sul do país, chegou a uns impressionantes 1,16 mil milhões de dólares, apesar de somente duas delas terem sido concluídas dentro do prazo e 25 outras nunca terem ficado concluídas, segundo o jornal La Nación. Para além do próprio Lázaro Báez, Kirchner terá a companhia de outros 11 arguidos, incluindo Julio de Vido, ex-ministro de Planificação Nacional, e José López, ex–secretário de Estado das Obras Públicas, num julgamento com mais de 160 testemunhas convocadas pela justiça.
Mas este não é o único escândalo em que Kirchner está envolvida. A ex-Presidente é acusada de fazer parte de uma rede de subornos que envolveu dezenas de empresários e funcionários públicos, que outorgariam obras públicas a troco de luvas. O escândalo atingiu tanto aliados como inimigos políticos de Kirchner, incluindo a família direta do atual Presidente, Mauricio Macri. O caso mais parece uma novela, tendo a casa do juiz encarregado do caso, Claudio Bonadio, sido alvo de um atentado à bomba.
Em resposta ao atual julgamento, a ex-Presidente escreveu no Twitter não ter tido “intervenção alguma nos expedientes administrativos que se realizaram por cada uma dessas obras”, salientando que foram “licitações de obras públicas rodoviárias realizadas por um órgão provincial” que não dependiam da sua aprovação. Kirchner não tem dúvidas: “É uma nova cortina de fumo para distrair os argentinos – com cada vez menos sucesso – da dramática situação que vive o nosso povo”.
A antiga chefe de Estado referia-se à crescente impopularidade de Macri, devido ao aumento da pobreza e da inflação, agravados pelos sucessivos aumentos de tarifas e cortes de subsídios – algo que o Presidente diz ser necessário devido à “herança recebida dos Kirchner”, que acusa de gastos excessivos e corrupção generalizada.
Para além do trauma coletivo que representa o julgamento de uma antiga chefe de Estado, o assunto ganha maior destaque com a aproximação das eleições presidenciais argentinas, marcadas para 27 de outubro, em que Kirchner era a candidata à Presidência com mais intenções de voto, ultrapassando até Macri. Mas esta semana, numa manobra inesperada, Kirchner abdicou da sua candidatura a favor do centrista Alberto Fernández – o antigo chefe de gabinete da sua Presidência e de Nestor -, optando por concorrer a vice-presidente com Fernández.
A ex-Presidente explicou a decisão como tentativa de expandir a base eleitoral da candidatura para lá dos peronistas – uma corrente política de centro-esquerda inspirada no antigo Presidente Juan Domingo Perón e que advoga justiça social e soberania. Contudo, os críticos de Kirchner notam que, embora o cargo de vice-presidente dê menos poder executivo que o de Presidente, é o vice-presidente que lidera o Senado – garantindo mais tempo de imunidade parlamentar e possibilitando que, caso seja condenada, a antiga chefe de Estado receba um indulto de Fernández.
Resta saber se o novo candidato conseguirá captar efetivamente o apoio dos eleitores fiéis a Kirchner. Fernández arrisca o mesmo resultado de outra tentativa semelhante, feita mesmo ali ao lado, no Brasil, onde Fernando Haddad tentou captar o eleitorado de Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2018 – que resultaram na eleição de Jair Bolsonaro.