A Associação Sindical dos Profissionais da Inspeção Tributária e Aduaneira (APIT) acusa o Governo de querer desvirtuar a ação inspetiva da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), transformando o seu corpo inspetivo num órgão de investigação e “inspeção low-cost”. Em causa está a elaboração de legislação que consagra a revisão das carreiras e respetivas formas de progressão e de remuneração dos funcionários da AT, que tem estado a ser negociada há longos meses com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, e a diretora geral da Autoridade Tributária, Helena Borges.
A associação diz que a falta de meios e a insistência do Governo em impor uma inspeção menos intrusiva estão a pôr em causa algumas das mais importantes investigações que este organismo tem em mãos. Apesar de a AT ser um órgão de polícia criminal (OPC), os seus inspetores parecem desenvolver o seu trabalho de forma clandestina: não têm carros do Estado, fazem vigilâncias e seguimentos nas suas próprias viaturas e, em caso de acidente, pagam do seu bolso a reparação da chapa.
As condições precárias não ficam por aqui. Os homens da AT usam muito do seu material pessoal, como impressoras, computadores e respetivos acessórios. Há direções de Finanças que têm apenas uma impressora para fazer face às necessidades de 600 trabalhadores, e outras que lhes pedem até que tragam de casa papel para alimentar a máquina. “Quem é que pode considerar que estes inspetores – que continuam a trabalhar de forma isolada, a utilizar os seus bens pessoais ao serviço do Estado (sem a devida compensação), que continuam sujeitos a inúmeras situações de risco para si e para os seus – se veem dignificados neste projeto de revisão de carreiras? Os únicos inspetores que trabalham nestas situações são também os únicos que não auferem o complemento de inspeção pago a todas as outras inspeções e que não têm de suportar estas degradantes condições de trabalho”, disse ao i o responsável da APIT, Nuno Barroso.
“É obrigatório que o anteprojeto [apresentado pelo Governo] considere no seu articulado as necessárias referências ao reconhecimento da AT e dos seus trabalhadores como OPC e autoridade de polícia criminal (APC), a exemplo do que o Governo instituiu para outras carreiras de Inspeção, como seja a carreira inspetiva da ASAE. Por conseguinte, deverá ser acrescentado um artigo que reconheça a qualidade de OPC e APC às carreiras especiais inspetivas”, refere o comunicado da APIT.
Confrontado pelo i com esta situação, Nuno Barroso, presidente da APIT, diz que estes são “apenas alguns dos exemplos de como se pretende, de forma propositada, desinvestir nas carreiras de inspeção tributária, com os resultados que se sabe. Quem vai pagar é o país, e o cidadão cumpridor”.
Carreira impossível Outros dos aspetos questionados pela APIT prendem-se com a avaliação e a progressão nas carreiras. Este sindicato denuncia “situações escandalosas” de congelamento das progressões, com 25% do capital humano a aguardar há 15 anos por um procedimento concursal.
“Este governo pretende impor uma carreira de 120 anos – 12 posições remuneratórias em que são necessários 10 pontos de SIADAP [Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho na Administração Pública] para progredir. Com esta proposta, a maioria esmagadora dos trabalhadores nunca chegará sequer perto de progredir até metade da sua carreira. Ou seja, desvaloriza os atuais trabalhadores e impede a criação de carreiras atrativas para ingresso de novos profissionais”, disse ao i Nuno Barroso.
A AT continua a ser vista como um OPC de segunda. De acordo com o responsável, uma semana depois de ter sido publicada a proposta para a AT, foi divulgada uma outra proposta para revisão das carreiras das inspeções setoriais: Inspeção da Segurança Social, Inspeção do Trabalho e Inspeção de Fundos Europeus, entre outras. Segundo o presidente da APIT, “a manterem-se estas propostas, o único setor da administração pública que não tem um corpo inspetivo setorial é a Autoridade Tributária e Aduaneira”.
Recorde-se que a APIT propõe a criação de três carreiras: Inspeção Tributária, Inspeção Aduaneira e Gestão Tributária. A primeira é unicategorial e as restantes pluricategoriais, correspondendo cada categoria aos graus de complexidade que existem nessas carreiras na estrutura da AT. “Estamos convictos de que esta proposta é a que melhor prepara e defende a Autoridade Tributária e Aduaneira, os seus dirigentes e os seus trabalhadores para a transição e para o futuro”, lê-se no comunicado emitido pela associação. “Se dúvidas existissem quanto ao ‘desejo’ de constituir uma inspeção low-cost na Autoridade Tributária e Aduaneira, basta a conjugação dos anteprojetos das carreiras da AT e das carreiras das inspeções setoriais para confirmamos que essa é a pretensão do Governo e da Direção da AT. Descaracterizar e Desvalorizar a Inspeção da AT”, acrescenta o documento.
Grandes investigações paradas O papel da AT tornou-se imprescindível na última década na investigação criminal – veja-se os casos das fraudes ao IVA em carrossel e operações como o caso Furacão, BPN e Marquês. Outras investigações estão neste momento em curso, mas a APIT teme que os entraves colocados pela direção da AT e pelo Governo, bem como a falta de condições para trabalhar, coloquem em causa o desempenho dos inspetores e, consequentemente, o desenvolvimento dos inquéritos.
“Com a crescente falta de meios, e a crescente necessidade pelo Governo e pela Direção da AT em tornar a Inspeção menos intrusiva – seja lá o que isso for –, temos de dar como certo que processos de maior dimensão, de maior complexidade e, necessariamente, de maior prejuízo para o Estado e para todos nós cidadãos e contribuintes, dificilmente voltarão a acontecer. Se o Governo não vê a necessidade de dotar a AT de um corpo inspetivo, que outra ilação temos nós de tirar? Alguém acredita que a automatização de processos vai, apenas por si, impedir a fuga e a evasão fiscal?”, questiona Nuno Barroso. “Uma inspeção low-cost como a que pretende ser imposta pelo Governo e pela AT só terá um resultado: hipotecar o futuro do país e dos seus cidadãos-contribuintes”, acrescenta.
No entanto, Nuno Barroso não aponta o dedo apenas ao Governo: “Tão ou ainda mais estranho tem sido o quase silêncio dos partidos que no parlamento apoiam este Governo, que de forma constante apregoam a necessidade de justiça fiscal e de combate à fraude e evasões fiscais e aduaneiras, mas que até ao momento nada disseram sobre a destruição deste corpo inspetivo”, disse ao i.
A APIT espera pelo agendamento da próxima reunião com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Se nada acontecer ou se desse reunião não saírem soluções viáveis para os inspetores, a associação pondera usar todos os meios à sua disposição para se fazer ouvir. E essa tomada de posição pode ir da recusa em utilizar viaturas particulares nos serviços externos à marcação de greve.
Em sentido contrário Enquanto em Portugal a AT tem desmontado imbricados sistemas de fraude ao Fisco promovidos por instituições financeiras, escritórios de advogados, grandes empresários e até um ex-primeiro-ministro, mas é olhada de esguelha, fora de portas investe-se no reforço de novas ferramentas para travar o crime.
Ainda esta semana, Pierre Moscovici, Comissário responsável pelos Assuntos Económicos e Financeiros, Fiscalidade e União Aduaneira, revelou que será implementado em breve um novo instrumento para ajudar os países da UE a reprimirem o crime de fraude ao IVA. Trata-se de uma ferramenta que permite aos Estados-membros trocar informações rapidamente.
“A fraude do IVA é um dos maiores problemas com que hoje se deparam as nossas finanças públicas e a sua erradicação deve ser uma prioridade máxima para os governos da UE. Este novo instrumento aumentará a rapidez com que as autoridades podem detetar as atividades suspeitas e contra elas reagir. No entanto, estes progressos não diminuem a necessidade de uma reforma mais profunda e mais substancial do sistema do IVA da UE, que permita fazer face ao grande número de operações transfronteiras na EU”, afirma o comissário europeu. Nuno Barroso faz comparações: “Neste aspeto, Portugal parece andar fora de mão em relação ao resto da Europa”.
Por cá, entre 2012 e 2016, a fraude ao IVA foi de 7,1 mil milhões de euros. Segundo Nuno Barroso, se o Estado investisse em ações contra a evasão fiscal da mesma forma que faz para cobrar dinheiro aos contribuintes, talvez os números da fuga ao Fisco não fossem tão elevados: “Atualmente, não estaríamos a falar de uma economia paralela com a dimensão de 25 por cento, nem de uma escala tão grande de fuga aos impostos. Não se deverá isto à falta de investimento nas carreiras inspetivas da AT? Esta fuga é responsabilidade governamental porque resulta de uma opção do Governo de desinvestimento na Inspeção Tributária”, disse ao i.
“Num país em que o combate à fuga aos impostos continua a ser uma espécie de esforço nacional e não são dados meios aos inspetores para fazerem o seu trabalho em condições, dificilmente o sucesso será maior do que aquele que tem existido. Nós gostaríamos de, daqui a 10 anos, estar a falar de uma economia paralela que fosse menos de metade do que é neste momento e isso só se consegue não só reconhecendo os inspetores tributários e inspetores aduaneiros como um corpo inspetivo, mas dotando-os também dos meios suficientes”, acrescenta.