Sinónimos. A batalha sem fim de Nadav Lapid

Sinónimos. A batalha sem fim de Nadav Lapid


No filme com que venceu o Urso de Ouro em Berlim, Nadav Lapid conta a história de Yoav, um israelita que chega a Paris decidido a não mais falar hebraico. A história que há 18 anos foi a sua.


Méchant, obscène, ignorant, hideux, vieux, sordide, grossier, abominable, fétide, lamentable, répugnant, détestable, abruti, etriqué, bas d’esprit, e aqui não importará certamente traduzir as palavras que Yoav há de percorrer até que se chegue ao título do último filme do israelita Nadav Lapid: Sinónimos. O primeiro rodado e falado em francês, numa coprodução com Israel e a Alemanha, que venceu em fevereiro o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim – e que acaba de chegar às salas. 

Traduzi-los não importa porque aqui a viagem será descobri-los, como descobre Yoav (Tom Mercier), que chegado a Paris, numa repetição da história que foi a do próprio realizador, não terá  muito mais que fazer para lá de tentar aprendê-los, em francês, como quem aprende uma nova música. A história para este seu filme autobiográfico, já Nadav Lapid a contou muitas vezes: “De um dia para o outro, como uma Joana d’Arc, decidi deixar Israel e nunca mais voltar. Dez dias depois aterrei no Charles de Gaulle decidido a nunca mais falar hebraico.” Com a ilusão de que o passado é uma coisa que se apaga, de que qualquer estrangeiro poderá acabar enterrado no Père Lachaise. 

Traduzi-los não importe talvez nunca. Importará perceber como um país poderá ser todos eles de uma vez – ou que país será esse, afinal. Israel, que Yoav acredita que morrerá antes de si, ou França? “Todas as culturas acabam por se tornar sinónimo umas das das outras”, dir-nos-á nesta conversa durante o IndieLisboa, que no domingo passado exibiu esta sua terceira longa-metragem como filme de encerramento. Daí que olhe para Yoav, que descreve como uma “versão melhorada” de si próprio quando aos 20 e poucos anos sonhou poder deixar de ser israelita, como um corpo para sempre sem casa, como um “exilado da existência”. 

Da última vez que esteve em Portugal, quando no ano passado o Curtas Vila do Conde lhe dedicou uma retrospetiva, havia dito ao i, numa entrevista, que a urgência de fazer filmes em Israel era a de fazer dos espectadores reféns (“Pensei sempre nos espectadores como reféns”, dizia). Talvez aqui os reféns não sejamos apenas nós, espectadores. Talvez seja também ele próprio. Nadav Lapid, o realizador que um dia largou Telavive em guerra contra essa alma coletiva israelita, que era também a sua. 

Por isso esperou 18 anos para fazer este filme, que vem como terceira longa-metragem? Era uma ideia que vinha desde o tempo daquela primeira  curta-metragem mas que precisava da oportunidade de filmar em Paris? Ou de um certo tempo, para ganhar distância?

O início disto tudo foi quando naquela altura comecei a tirar notas. Sem saber sequer que quereria fazer filmes ou alguma espécie de trabalho artístico, compreendi que alguma coisa estava a acontecer e comecei a tirar notas. 

Como numa espécie de diário? Ou apenas notas soltas?

Não era um diário organizado. Normalmente eram frases, descrições, sobre o que sentia num dado momento. Não se tratava de nenhuma espécie de crónica organizada do que era a minha vida…

Anotações de sentimentos ou sensações que não queria que se perdessem na memória. 

Sim, queria registar sentimentos, mais do que acontecimentos – até porque não havia muita coisa a acontecer. A maior parte do tempo a vida era só aborrecida e repetitiva: caminhar pelas ruas, comer a mesma comida, etc. A vida era aborrecida, mas as emoções eram poderosas e quis preservá-las na minha mente. Porque o drama era interior. Dentro de mim, havia muita coisa a acontecer. Depois, quando comecei a fazer filmes, o meu filme de curso é na verdade a segunda parte do Sinónimos. Chama-se Emile’s Girlfriend [A Namorada de Emile] e começa dois anos depois de o Yoav ter regressado a Israel – e estão lá o Emile e as mesmas personagens. Nessa altura não me passava pela cabeça que algum dia alguém teria interesse em que eu filmasse em Paris, portanto esta história estava um bocado fora de equação. Nunca imaginei que os franceses me convidassem para pôr a minha câmara em Paris e fazer um filme sobre a minha vida. 

Está a falar de Saïd Ben Saïd, o produtor deste filme?

Sim. Só depois de O Polícia [primeira longa-metragem, de 2011] é que comecei a receber emails de produtores franceses. Antes do Saïd houve uma outra produtora que me convidou para nos encontrarmos em Paris e lembro-me de estar a caminho do café a tentar inventar histórias, até que a dada altura parei: Porque é que estou à procura de histórias se tenho esta? Foi assim que começou. Mas, sim, talvez precisasse também de uma certa distância para poder contá-la. Porque o que acho que foi mais poderoso quando isto aconteceu, e que acho que passou para o filme, foi o facto de tudo ser tão inconsciente, baseado em impulsos. 

Foi também essa a forma de trabalhar neste filme?

A certa altura comecei a questionar-me sobre se seria capaz de reencontrar aquelas emoções. Porque na altura, quando cheguei a Paris, não era ninguém. Estava mesmo no fundo da pirâmide social: era um estrangeiro, sem documentos, ilegal, sem o direito de viver ali, sem a possibilidade de trabalhar sequer num café. Arranjei os trabalhos mais estranhos, ilegais, sentia-me sozinho, tinha fome, vivia num estúdio de 9m2 com um buraco no teto, comia todos os dias a mesma coisa, exatamente como no filme. E, agora, quando vou a Paris, os meus filmes são mostrados lá, conheço uma data de pessoas do meio do cinema que me recebem em bons apartamentos, que me convidam para jantar. Quando estava a preparar o filme – fui para Paris dez meses antes da rodagem – questionei-me mesmo sobre isto: deveria agora alugar um estúdio de 9m2 e comer massa durante estes dez meses?

E foi isso que aconteceu?

Não, não fiz [risos]. Mas há um lado pós-traumático na minha relação com Paris. De cada vez que lá volto tenho esta sensação de que a qualquer momento acabarei por me sentir sozinho ou com fome. Continuo com isto, até hoje, essa sensação de que vai chegar um momento em que eles vão descobrir que eu não sou um deles e que me vão expulsar.

Tem pesadelos com isso?

[Pausa] É engraçado porque lembro-me de o ator principal [Tom Mercier], que mergulhou completamente na história e que depois do filme ficou a viver em Paris, me ter dito que de vez em quando também diz para si próprio que, no final, dará por si diante de uma porta fechada. Isto sobre ele próprio. De certa forma, sinto o mesmo. 

O filme termina com ele a atirar-se contra uma porta fechada, tentando arrombá-la com uma determinação que nos faz acreditar que ficará a tentar arrombá-la para sempre. 

Exatamente.

A imagem desaparece mas o som dele a atirar-se contra aquela porta continua, já durante os créditos finais.

Acho que o filme começa e acaba no mesmo lugar. Com ele a tentar abrir portas fechadas que permanecerão fechadas. É o falhanço da tentativa de pertencer.

No início com alguma esperança, ainda assim. 

Sim, porque no início ninguém abre a porta e, de certa forma, ele morre, numa espécie de morte simbólica, quando passa frio quase ao ponto de morrer. Mas depois, como nas lendas, ele renasce, e acorda completamente nu, como um bebé, na cama do casal francês das suas fantasias. O casal francês mais francês possível, o casal francês dos filmes. Mas, para chegar aí, teve de morrer, de quase morrer numa banheira gelada. Teve de pagar um preço alto para poder renascer. E depois atravessa todo um processo até ao final, que é o destino de qualquer estrangeiro. A qualquer momento, pode ser atirado fora, porque não pertence realmente ali, porque está dependente da boa vontade de quem o acolhe. 

Mas na altura em que deixou Israel e foi para Paris fê-lo com a ilusão de que, se não voltasse a Israel, se não voltasse a falar hebraico, poderia de facto tornar-se francês, tornar-se num deles. 

Sim. É a tragédia do estrangeiro. Na cabeça dele, desistiu de tanta coisa, deixou para trás tanta coisa, que de acha que ganhou o direito de estar ali. Para os locais, é um estrangeiro. E quando se é estrangeiro nada está garantido. Acho que também é por isso que o Yoav tem tanta necessidade de dançar, de contar histórias, de ser virtuoso, de ser bonito, de ter graça, de ser original, de ser sexual, de ter sexo com um, de contar histórias ao outro. Quer agradar aos locais. Mas, no final, perde a batalha – mas a batalha era também contra ele próprio. Mais do que sobre todas as questões [levantadas] em relação a Israel e a França, o filme é sobre esta personagem como uma espécie de exilado da existência. E, de certa forma, um lutador, porque está sempre em luta com qualquer coisa. Há um instinto para a luta, para a agitação. De certa forma, nunca será capaz de encontrar um país que sirva, que seja como o imaginou. Cada lugar terá os seus problemas. Todas as culturas do mundo se tornam, nalgum ponto, sinónimo umas das outras, todos os hinos nacionais têm algo de feio. E ele acabará sempre por dar por si a chocar contra portas fechadas. E talvez isso seja ok. Não é uma condição fácil, mas pelo menos é ativa. Ir contra uma parede é melhor do que ficar num sofá, deprimido. 

Ir contra uma parede. O gesto que cada uma das personagens dos seus filmes acabam por repetir, sempre. 

Sim, porque a parede também são eles próprios. É esse o problema. Travam batalhas perdidas. Estão em guerra contra um tempo ou contra eles próprios, não têm hipótese. Mas, se pensarmos, imagina que alguém abre a porta: entram, ficam felizes por um tempo… mas e depois?

Ainda em relação a essa ideia que a guerra que ele trava é contra si próprio, da parede contra a qual se atira ser ele próprio: essa ideia é explorada de uma forma muito física neste filme em particular. Os comportamentos dele, Yoav, são quase autodestrutivos, sobretudo em relação ao seu corpo, com todas as provaçõe a que é submetido.

A partir do momento em que declara uma guerra contra o seu passado, logo contra si próprio, e contra a alma coletiva israelita, que é também a sua própria alma, o mal está dentro dele, um bocadinho como num filme de terror, como no Rosemary’s Baby [1968, Roman Polanski]. Por isso é que ele parte para uma decisão tão radical como deixar para trás as suas próprias palavras, a sua própria língua, e pára de falar hebraico. Ao trocar as palavras hebraicas por novas palavras em francês está a revolver o problema linguístico, mas o corpo continua a ser israelita. O seu corpo contém o passado. 

E as memórias que contém são impossíveis de apagar.

Exato. O seu passado está escrito no seu próprio corpo. Daí esta necessidade quase inconsciente de aniquilar o seu próprio corpo, que no início do filme quase congela, depois leva a passar fome e, a certa altura, prostitui – num momento em que, pela primeira vez, dá por si a falar hebraico. Como se o corpo fosse mais esperto do que ele e encontrasse uma forma de voltar aonde pertence. 

E vem aquela cena com a rapariga palestiniana com quem lhe pedem que contracene num filme porno. 

Houve quem escrevesse sobre essa cena como a reconciliação israelo-palestiniana como uma forma de fantasia pornográfica europeia. É um desejo tão antigo que quase que se torna pornográfico um beijo entre um israelita e uma palestiniana. Mas ainda em relação à questão do corpo, é como se por instinto quisesse acabar com o seu corpo, que acaba sempre por sobreviver. 

No início falava sobre como no tempo em Paris não havia grande coisa a acontecer. Como neste filme – e será provavelmente por aí que mais se distingue dos anteriores, com estruturas narrativas mais complexas. Não que este não seja complexo, mas a complexidade está noutro lugar.

É muito mais primitivo. Não se passa grande coisa, é verdade…

Mas tudo se passa ao mesmo tempo.

Exatamente. Um tipo que caminha pelas ruas de Paris enquanto murmura palavras em francês não soa a grande coisa, mas no filme é dramático. Em termos narrativos, há um tipo que chega a Paris, no início as coisas acabam por correr bem, depois começam a correr mal e ele vai-se embora. Aqui, em vez de me concentrar na história, o que procurei foi mergulhar em cada momento para encontrar a melodia existencial da personagem. Talvez por isso seja tão primitivo, selvagem, mas também profundo. 

Esta simplicidade narrativa fez de Sinónimos um filme mais difícil do que os anteriores?

Acabou por ser, sim, porque precisei de algum tempo para conseguir perceber, entre tudo o que aconteceu naquele período, o que importava contar. Porque aconteceram-me muitas coisas. Precisei mesmo de algum tempo para perceber o que deveria contar – e como contar. Reunir todos estes acontecimentos e transformá-los num só gesto, numa melodia, num sentimento. Não queria que o filme se resumisse a uma sucessão de episódios desconectados entre si, queria que resultasse num só movimento, numa só vibração. Queria que a câmara que nos primeiros segundos do filme vibra num passeio de Paris não parasse de vibrar, até ao final. 

E que movimento é esse? É nomeável?

Para cima, para baixo, para a esquerda e para a direita [risos].

Como é que chegou ao Tom Mercier?

O problema de estar a fazer um filme sobre mim próprio há 18 anos é que quando estava a escrever o argumento estava a imaginar-me a mim e quando começámos a chegar à altura do casting comecei a sentir que nunca conseguiria chegar à verdade. Que a única solução seria escolher-me a mim próprio para o papel, mas que também não poderia ser eu agora. Foi como estar constantemente a fazer o luto do jovem Nadav impossível, ao ponto de começar a achar que o filme deveria ter sido feito naquela altura. A forma que encontrei de ultrapassar isto foi procurar uma versão melhorada de mim. Acho que o Tom Mercier é isso. No momento em que o conheci, esqueci essa ideia do jovem Nadav. 

Mas porquê uma “versão melhorada”?

Acho que foi isso que me permitiu saltar do que seria apenas uma autoficção para uma obra de arte. O Tom permitiu-me estar ao mesmo tempo, a uma certa distância, mas envolvido, o que antes era impossível. Além disso, nunca tinha conhecido ninguém assim. O Tom é uma figura cheia de combinações improváveis. Primeiro, foi uma jovem promessa do judo israelita – acreditava-se que um dia ganharia medalhas nos Jogos Olímpicos – mas um dia desistiu para se tornar bailarino. No início, era capaz de memorizar páginas e páginas de argumento em francês, apesar de nessa altura ainda não falar bem francês, e isto é uma coisa de génio. Tê-lo num filme é como ter o Superhomem, porque é capaz de qualquer coisa. Física e intelectualmente. Imagina o que é teres o Superhomem no elenco. Isto pode ser quase perigoso para um realizador. E além disto, ele dedica-se mesmo ao argumento – lê-o cinco vezes ao dia, de forma quase religiosa, ao ponto de rapidamente o conhecer melhor do que o realizador. Mas ao mesmo tempo que é super dedicado e trabalhador, nunca se atrasa, consegue ser absolutamente livre. É uma pessoa sem limites. Vive num mundo sem fronteiras.