Se hoje Lisboa se arranjar mais, o tempo estiver bom, e ela subir um pouco a saia, quem souber que Roberto Carlos está na cidade para dar um concerto pode achar que ela se pôs bonita para recebê-lo. Eis o homem que, dada a dimensão do seu mito, tem parecenças com um evento metereológico. Mesmo quem não esteja avisado talvez pressinta que ele está aí, entreouvindo os fiéis pelas ruas a cantarolar algum dos tantos sucessos que preenchem as quase seis décadas do seu reinado na música brasileira. E este tem sido tão longo que parece, na verdade, durar há uns 300 anos. De tão familiar a voz e a figura, os 78 anos que fez no mês passado parecem das idades mais jovens para um músico cuja popularidade, expressa em vendas milionárias – mais de 125 milhões de álbuns vendidos –, o coloca entre um reservado lote de astros como The Beatles ou Elvis Presley.
Esta noite, na Altice Arena, Roberto Carlos dá o primeiro de quatro concertos em Portugal, naquela que poderá ser a sua última tournée europeia. A segunda data é 25 de maio, no Multiusos de Gondomar. Incansável, toda a vida desafiou a ideia de que a música que o grande público adopta como expressão é uma arte acomodada ou pobre, e habituou os fãs a esperarem novos discos a cada ano. Já este ano, lançou um novo álbum em espanhol que conta com a participação de Alejandro Sanz.
É considerado um momento crucial da história da música popular brasileira aquele em que o produtor Carlos Imperial convenceu o rapaz tímido, chegado do interior e que tentava meter-se na música pela bossa-nova, de que não iria longe imitando João Gilberto: “violãozinho, mãozinha de aranha no acorde difícil, voz baixa”, como descreve Pedro Só. Ora, a alternativa era segurar o entusiasmo em volta do rock, que estava a abrir caminho no país a partir de versões em português de hits que vinham de Inglaterra e dos EUA. Aquele novo e impetuoso ritmo ficou conhecido como iê-iê-iê, nome derivado dos gritos de “yeah yeah yeah”, berrados pelo quarteto de Liverpool na música “She Loves You”. Não levaria muito para que Roberto Carlos fosse o responsável por escancarar as portas do país a esta influência, e, ao contrário da maioria dos intelectuais da época, que diziam que o iê-iê-iê brasileiro não é, nem nos seus melhores momentos, mais que uma cópia do estrangeiro, o poeta Augusto de Campos defendeu Roberto e o seu parceiro na composição das canções, Erasmo Carlos, defendendo que os se encarregaram de “traduzir o estilo e degluti-lo”, por meio do “uso funcional e moderno da voz”.
E mesmo os artistas mais relevantes da MPB, que primeiro olharam com desconfiança para o iê-iê-iê, acusando os seus representantes de serem um bando de alienados submissos à influência perversa do imperialismo norte-americano, e que ainda ofereceram resistência quando Roberto Carlos fez a decantação, completando a sua metamorfose nesse sedutor crooner de uma delicadeza incomparável, se levaram alguns anos, por fim, um a um, renderam-se-lhe. No livro “Verdade Tropical”, Caetano Veloso explica a força mitológica da figura de Roberto Carlos, vendo-o como uma personagem central na transformação cultural do país, e isto porque foi sempre a encarnação do inconsciente nacional: “Ele era, comoventemente, a cara do Brasil de então”.