Nova insulina basal comparticipada: um passo em frente ou mais uma ilusão?

Nova insulina basal comparticipada: um passo em frente ou mais uma ilusão?


A insulina basal é a mais administrada pelos diabéticos portugueses. A insulina degludec, comparticipada pelo Estado, é a nova concorrente da Lantus. Constituirá uma inovação na terapêutica da diabetes ou mais um esforço gorado?


A Novo Nordisk, companhia global de cuidados de saúde, anunciou no passado dia 6 de maio que uma nova geração de insulina basal – insulina degludec – será comparticipada para o tratamento da diabetes mellitus tipo 1 e para quem sofre de hipoglicemia. No entanto, este medicamento aparentemente inovador, que obteve a comparticipação do Estado Português e que tem um alegado reconhecido valor terapêutico, não gera uma aceitação unânime entre os futuros utilizadores.

Em 95 anos de história, a Novo Nordisk sempre assumiu a liderança no tratamento da diabetes. Contudo, importa estabelecer uma distinção entre os três tipos existentes nesta doença que ainda não é totalmente compreendida em território português.

A diabetes tipo I é causada por fatores genéticos ou doenças como a anemia perniciosa, a doença de Addison ou a doença celíaca. O pâncreas deixa subitamente de produzir insulina, a subida do açúcar no sangue é súbita e muito exagerada, a falta de insulina dá origem à produção de substâncias tóxicas no organismo denominadas por corpos cetónicos que provocam mal-estar e náuseas. Para além destes sintomas, é de realçar que, como não existe produção de insulina, a única forma de tratar este tipo de diabetes é administrar a mesma.

Por outro lado, a diabetes tipo II afeta a capacidade do organismo de converter o açúcar presente no sangue em energia. O organismo não responde à insulina como devia – isto é, a chamada resistência à insulina – e dá-se a subida anormal e progressiva dos níveis de açúcar no sangue (glicemia). Existem variadas causas, como a obesidade, o histórico familiar de diabetes, o sedentarismo ou a hipertensão.

A diabetes menos abordada é a gestacional, ocorrida durante a gravidez devido à produção de elevados níveis de hormonas pela placenta, que prejudicam a ação da insulina nas células, aumentando o nível de açúcar no sangue da gestante. À medida que o bebé cresce, a placenta produz mais hormonas que atuam no bloqueio de insulina. Existem variados motivos para este tipo de diabetes, como a diabetes gestacional anterior, a tolerância à glicose diminuída ou glicemia de jejum alterada.

De acordo os dados do Observatório Nacional de Diabetes, atualmente existem um milhão de diabéticos em Portugal acompanhados por dois milhões de pré-diabéticos (pessoas que podem vir a desenvolver a doença nos próximos dez anos). É importante referir que esta doença, há apenas dois anos, era a terceira causa de morte mais frequente em homens com idades compreendidas entre os 50 e os 60 anos.

Em Portugal, a insulina mais utilizada é a Glargina U100, mais conhecida por Lantus: um análogo da insulina com uma ação de duração prolongada. Preferencialmente administrada uma vez por dia a qualquer hora – mas sempre à mesma hora, todos os dias – deve ser ajustada de acordo com as necessidades de cada doente. Por exemplo, em diabéticos do tipo II, pode ser combinada com antidiabéticos orais.

A insulina degludec tem uma ação basal que pode durar até 42 horas. Ou seja, permite uma maior flexibilidade em relação à hora da administração, sem causar impacto nos valores de glicemia. É associada igualmente a uma menor incidência de hipoglicemia quando comparada com a Lantus.

Há conceitos que urge esclarecer. O de ação basal, que diz respeito à insulina de ação lenta, também conhecida como insulina de longa duração ou insulina basal opõe-se à insulina bolus, deação rápida: administrada, por exemplo, para correção da glicemia. Ou o de hipoglicemia, tantas vezes referido mas poucas entendido: normalmente, o nosso organismo mantém a concentração de açúcar no sangue de 70 a 110 mg/dl de sangue. Na diabetes, os valores tornam-se demasiado altos; na hipoglicemia, são demasiado baixos, sendo que esta ocorre quando os níveis de glicose descem abaixo dos 70mg/dl. Alguns dos sintomas da hipoglicemia são o suor excessivo, os tremores, a fraqueza, a palidez, a fome, a dificuldade na concentração e a alteração da consciência.

Para compreender melhor a implementação da nova insulina basal comparticipada, o SOL esteve à conversa com Beatriz Guerreiro (nome fictício), uma jovem de 30 anos. Diabética desde o primeiro dia de vida, considera que “a relação entre a insulina basal e as hipoglicemias é muito relativa” na medida em que esta insulina pode ter uma durabilidade de “24 horas mas tem picos de mais efeito”.

Beatriz começou por administrar 30 unidades de insulina – esta designação está conectada ao método de aplicação de insulina: as seringas, que são numeradas em unidades, adequadas à concentração U-100 – isto é, em 1ml, existem 100 unidades (UI) de insulina.

Além disso, Beatriz tinha hipoglicemias à noite, passando para entre 20 a 24 unidades posteriormente e admite que tem de tentar encontrar um equilíbrio para “evitar a sobreposição de unidades e ter em atenção as que ainda estão no organismo no período das 24 horas”.

“Já não há tempo para andarmos a brincar aos laboratórios”

“Disseram aos meus pais que a diabetes era maioritariamente hereditária e que passaria de avós para netos mas, na minha família, ninguém sofre disto. A minha mãe teve uma gravidez normalíssima e, por isso, apontam para uma mutação genética” explica a rapariga que encara a comparticipação de insulina basal como um “passinho de formiga” devido à antiguidade da doença.

A verdade é que a primeira referência a uma doença que se caracterizava “pela emissão frequente e abundante de urina” foi feita num papiro egício descoberto pelo alemão Gerg Ebers em 1872. Por isso, Beatriz acredita que “já não há tempo para andarmos a brincar aos laboratórios” e que a mudança tem de acontecer.

Naquilo que concerne às bombas de insulina, oferecidas pelo Estado português a todos os diabéticos até aos 18 anos, a entrevistada fala sem rodeios: “Quantos diabéticos conhecemos que as conseguiram pagar? Gastei dinheiro nesse dispositivo e tive de o trocar de duas em duas semanas”.

De facto, pode ler-se nos sites oficiais das Farmácias Portuguesas e da Associação Protetora de Diabéticos de Portugal que “o dispositivo funciona sem parar”, sendo que “liberta pequenas quantidades de insulina durante o dia e tem aproximadamente o tamanho de um telemóvel”. Na opinião de Beatriz, foi apenas mais uma tentativa frustrada, da parte do Estado para apoiar quem sofre desta doença metabólica crónica: “Saía caro para um aparelho nada fidedigno nos resultados”.

Questionada acerca daquilo que sente enquanto portadora desta patologia em Portugal, a jovem faz uma analogia entre quem era enquanto criança e quem é hoje: “Quando era pequena, significava ser a coitadinha que não podia comer doces. Hoje, sou invisível e as pessoas não me dizem nada. É como se não fosse uma doença complexa”.

“Na sociedade de hoje (…) ter diabetes é horrível”

A grande questão que se impõe é: será que a comparticipação desta nova geração de insulina basal será uma lufada de ar fresco na terapêutica da diabetes em solo lusitano? Os resultados do estudo ReFLeCT – um estudo de vida real realizado à escala mundial – apresentados na Conferência Diabetes UK Professional (DUK) 2019, em Liverpool, apontam nesse sentido.

Segundo o ReFleCT, os diabéticos tipo I e II que utilizam insulina degludec em substituição de insulina basal melhoram o controlo dos níveis de glicose no sangue e apresentam uma redução significativa da taxa de hipoglicemia. Mas, para Beatriz, há que entender que “no início, esta doença pode dar muito dinheiro aos laboratórios porque os diabéticos têm de pagar pela insulina quer queiram quer não”. Apesar disso, a jovem adianta que, a longo prazo, os diabéticos transformam-se numa população idosa que “enche os hospitais e só dá despesa ao Estado”.

Afinal, qual é a solução para evitar ilusões e avançar no tratamento da diabetes? Beatriz não sabe, mas de uma coisa está certa: na sociedade do séc. XXI, onde todos os indivíduos estão absorvidos pelas distintas esferas do quotidiano, “ter diabetes é horrível” porque a doença não tira folgas. Resta a esperança de que a investigação científica e o esforço estatal também não tirem.

*Editado por Carmen Guilherme