Não andes a correr que ainda cais!
Não vás tão depressa, já te disse cem vezes.
E um dia, vá lá saber-se porquê ou vindo de onde, um dia tudo muda.
Porque há um dom.
Um brilho especial nos olhos.
Porque começou uma espiral de milésimas que não se quer ver acabar.
Nesse dia, um pai e uma mãe juntaram-se também, talvez ainda sem perceber totalmente o destino, ao grupo de quem fará das curvas a reta dos seus sonhos.
Que longa é a escadaria, que degraus tão grandes e, por vezes, tão escorregadios.
Uns tempos atrás tive oportunidade de estar no Autódromo do Estoril, corriam meninos-rapazes feitos gente grande que estão quase a ser… que tanto querem ser.
Gente. E grande.
Chovia, e a chuva aqui, ou melhor, a chuva por ali serviu para me assanhar mais ainda uma melancolia trazida pelo deserto das bancadas que no lado de lá da pista pareciam abrigar apenas o vento e o cinzento do dia.
Estando na bancada do paddock, com vistas privilegiadas, assisti então à saída das boxes de um rapaz que me fez lembrar o meu filhote, em estatura e quiçá em idade e seus sonhos.
Nesse preciso instante em que o vi ir dali para fora, para um mundo apenas dele, em que será um solitário temeroso que apenas quer ser feliz, nesse momento senti-me só.
E estarreci.
Quem era eu para me atrever a sentir semelhante coisa?
Talvez a minha incomodidade fosse apenas a consequência de me ter sido escancarada a dura solidão de um pai e de uma mãe de meninos assim.
De meninos e de meninas. De rapazes e raparigas.
Pilotos.
Anda, corre que não cais!
Vai mais depressa, já te pedi em silêncio cem vezes.
Qual será o momento em que se transformam num deles?
Como aprenderão um pai e uma mãe a sorrir nas vitórias e a abraçar nas derrotas?… Sentindo mil vezes amplificada a alegria e a tristeza dos meninos que lhes foram bebés de carrinho e são agora quase homens/mulheres feitos de velocidades que muitos deles, pais e mães, nem percebiam sequer que existissem?
Não há solidão maior que aquela que nos faz parar no tempo, desejar que ele avance e, ao mesmo tempo, que se suspenda.
Numa curva perfeita.
Numa reta com bandeira de xadrez.
Há curvas que apenas ganham lugar na realidade e no tempo quando neles se recorta a silhueta de adolescentes rapazes, de adolescentes raparigas cujos pais os dividem por ali com cronos e imagens nos ecrãs de TV.
Não há segundos mais eternos que aqueles que medeiam entre uma queda e o momento de um piloto se levantar.
Não há tempo no relógio do coração de pais e mães assim.
Andará um de crono em crono, de curva em curva.
Outro atento e captando sinais numa silhueta que passa a 200 à hora.
Ambos seguindo, pai e mãe.
Ambos rodeados de mil pessoas, ambos sós.
Não há solidão maior.
Não há momento mais súbito e não há distância que cresça mais célere que aqueles trazidos por um menino que sai de mota correndo.
Melhor, sai de mota voando.
E não há queixumes, não há desistências.
Há trabalho, há esforço, tantas vezes dificuldades atrás de dificuldades.
Em busca do pódio maior que é o sorriso de um filho.
Filho que descobriu num dia algures no passado que o seu caminho era por ali.
Conhecemos Julià Márquez, dos ecrãs onde absorvemos as suas emoções com as corridas de Marc e Alex.
Conhecemos Paulo Oliveira, sorriso largo em homem grande, acompanhando o Falcão que é agora de todos nós.
E cá estaremos para conhecer quem por ora segue construindo em sua tão grande… e íntima solidão.