Os irritantes


O Ministério das Finanças não assegura o essencial das despesas correntes para padrões mínimos de normalidade e qualidade dos serviços, mas anui a alguns autênticos desmandos de sustentabilidade dos apoiantes da solução governativa.


Há um nível de volatilidade e de inconstância na vida portuguesa que se constitui numa espécie de irritante, sendo uma boa base de partida para a emergência de fenómenos que revelam a falta de eficácia do funcionamento da sociedade, a incoerência dos protagonistas e uma certa irresponsabilidade tolerada pela comunidade. E por tudo isto, há sempre alguém que se converte em irritante.

Siresp. A rede de comunicações de emergência, criada numa parceria público-privada pelo governo de Durão Barroso, tem uma rede básica e, desde 2018, uma rede de redundância por satélite. A rede básica suporta as comunicações correntes das forças de segurança, dos bombeiros, dos órgãos de polícia criminal ou do INEM. A rede de redundância, que António Costa ministro retirou das obrigações do Siresp em 2006 e António Costa primeiro-ministro impôs em 2018, após os trágicos incêndios florestais de 2017, serve para suprir ausência da concretização dos investimentos que deveriam ter sido realizados para eliminar as zonas de sombra e para acomodar utilizações massivas da rede em momentos de especial emergência. O Estado, que impôs um investimento de mais de 10 milhões, ameaça agora agir com custos superiores a 100 milhões, num sinal totalmente contraditório com a narrativa da responsabilidade e das contas certas. Aqui, como em demasiadas áreas da governação, há uma atitude das finanças que, percebendo-se o sentido da gestão pela cativação, pelo adiamento das decisões de despesa e pela contenção, acaba por assumir uma dimensão de irresponsabilidade. Não assegura o essencial das despesas correntes para padrões mínimos de normalidade e qualidade dos serviços, mas anui a alguns autênticos desmandos de sustentabilidade dos apoiantes da solução governativa. Foi assim ao longo dos últimos quatro anos, com o nível de ingratidão desses partidos, que persistem em sustentar mais derivas de despesa sem cuidar da sustentabilidade e da resolução de questões estruturais.

Em 2017, em vésperas da época de incêndios, o governo desestabilizou a estrutura da Proteção Civil com mexidas na organização e nas lideranças; em 2019, para além de estarem em curso mudanças na organização e de persistirem situações de desmobilização de protagonistas centrais do dispositivo, querem acrescentar problemas de sustentabilidade da rede de emergência, nomeadamente na redundância. Já não bastava os parceiros que querem que se gaste mesmo que não se tenha, agora temos o Governo a, não pagando o que impôs, também por incompetência de quem provocou o chumbo do Tribunal de Contas, querer gastar ainda mais na nacionalização do Siresp. O problema não é de arrufos ou de arremessos de autoridade, é mesmo de responsabilidade, seriedade e contas certas.

Professores. Superado este momento de pseudocrise política gerada pela convergência negativa de vontades no Parlamento sobre a reposição da contagem de tempo dos professores, nascida da forja governativa de 2015, 2016 e 2017 de que havia recursos quase infindáveis para repor e virar a página da austeridade, o irritante vai-se manter, mesmo que a segmentação do eleitorado permita uma razoável convergência maioritária com a posição do Governo. Não se iludam que o caso antecipou na plenitude o que vão ser os próximos tempos de fustigação do PS à direita e à esquerda, a mesma que sustentou e viabilizou a linha de governação que agora contesta. Não se iludam que o irritante dos professores vai deixar marcas e ter consequências eleitorais. Uma coisa é haver uns convergentes com o governo que, do sofá, respondem a uma sondagem, outra bem diferente, como já se viu no passado, é haver uma classe que se mobiliza nos locais de trabalho e na rua pelas expetativas que foram geradas. Mesmo que o descalabro da prestação da direita neste processo acabe por funcionar como abono de família, pelo que fez e pelo que tentou iludir os portugueses, e que a esquerda do PS que sustentou a solução governativa pareça cada vez mais aqueles donos de animais domésticos que, no verão, tendem a abandonar os ditos para ir à vida. Não tenho animais em casa, mas sempre considerei abjeto esse comportamento.

Em ano de eleições, depois de quatro anos de enorme fustigação de austeridade e de um anunciado contraste de uma governação com viragem de página em relação a essa voragem, não deveria existir o nível de irritantes que persistem e que podem determinar impulsos cívicos e eleitorais. Há demasiados irritantes a ecoarem na população, gerando indignação para a abstenção ou inconformismo para a participação. O tempo o dirá.

 

NOTAS FINAIS

IRRITA MESMO. Esta coisa de glorificar as pessoas depois de saírem de funções ou quando morrem é irritante. Alfredo Pérez Rubalcaba, antigo ministro do interior de Espanha e secretário-geral do PSOE, é um desses exemplos de dignidade e de coerência política em que só a morte inesperada sublinha o amplo reconhecimento público do seu caráter, exemplo e relevância. Não devia ser assim.

DÁ VONTADE DE. Portugal é um país de gente séria em que demasiados procuram contornar as obrigações e as regras e alguns pavoneiam abusos de posição, anteriores ou atuais, sem que o cutelo da consequência produza os efeitos adequados. A prestação de Joe Berardo no Parlamento é apenas uma mediatização dessa forma de estar na vida, acima de todos e com os outros a fazerem de parvos. É tudo à grande.

 

Escreve à segunda-feira