Dos Açores para o mundo. A arte no meio do Atlântico

Dos Açores para o mundo. A arte no meio do Atlântico


Na ilha de S. Miguel encontramos duas instituições cuja atividade tem vindo a contribuir para a tão falada descentralização da arte. Tanto o Arquipélago como as residências artísticas do Pico do Refúgio têm contribuído para colocar os Açores na rota da arte contemporânea.


Nas descrições impressivas que o escritor italiano e amante de Portugal António Tabucchi escreveu sobre os Açores, onde não faltam os temas clássicos que ficaram para sempre associados a este arquipélago situado no Atlântico Norte, a ilha de S. Miguel ocupa certamente um lugar proeminente. É nela que nasce e morre Antero de Quental, poeta com “doença de infinito”, é nela que se concentram os estudos do Príncipe Alberto I do Mónaco, uma daquelas figuras, em conjunto com o Rei D. Carlos de Portugal, que une uma sede de saber a uma vontade indómita – o século XIX conheceu bastantes figuras assim, amadores que desbravaram caminhos em diversos campos científicos -, mas também há nela essa relação profunda, que todo o arquipélago tem, com a caça ao cachalote, esse animal mastodôntico que parece surgir da noite dos tempos e com quem os homens se mediram ao longo dos tempos.

“S. Miguel está pejada de cruzes e, por conseguinte, de almas que vagueiam pelos rochedos, pelas praias de lava onde o mar se enfurece. No princípio da noite ou de manhã muito cedo, se se presta atenção, pode ouvir-se as suas vozes. São lamentos confusos, ladainhas e sussurros que, se se é céptico ou distraído, é fácil confundir com o ruído do mar ou o grito dos milhafres.”

Uma família ligada à arte

Quase a chegar à Ribeira Grande, uma cidade com cerca de 12.000 habitantes na costa norte da ilha, encontramos uma Vila com o interessante nome de Rabo de Peixe, onde se situa aquilo que é hoje uma antiga herdade transformada em turismo rural: Pico do Refúgio. Havendo notícias dela desde metade do século XVIII, com uma história que acompanha a da ilha nas suas vicissitudes – foi refúgio de miguelistas no século XIX, forte de milícias, mas também quinta de laranjais e, finalmente, uma fábrica de chá até esta indústria ter quase desaparecido da ilha já no século XX -, é, no entanto, um outro tipo de história aquela que agora nos interessa e que liga o Pico do Refúgio à arte nos Açores.

Aberta ao público como turismo rural desde 2008, depois de obras de reconstrução e requalificação, o Pico do Refúgio conta também uma história ligada à arte que começa com o bisavô de Bernardo Brito e Abreu – atual proprietário -, o historiador de arte, etnógrafo e pintor Luís Bernardo Leite de Ataíde. Este último, nascido na década de 80 do século XIX e morrendo em Ponta Delgada em 1955, dividiu a sua vida entre a prática da pintura de base impressionista, os estudos etnográficos e a preocupação pelo património cultural da ilha – fundou, em 1912, a secção de arte e etnografia do Museu Carlos Machado e ajudou no restauro de diversos edifícios em S. Miguel. A sua filha, Maria Luísa Ataíde, com uma pintura onde também se nota uma forte ligação à paisagem e natureza da ilha de S. Miguel, avó de Bernardo Brito e Abreu, foi igualmente uma figura destacada da cultura micaelense, vindo a ser diretora, entre 1955 e 1974 da secção de arte do Museu Carlos Machado – acalentava o sonho, nunca cumprido, de um Museu da Criança. 

Mas talvez a figura mais importante desta ligação do Pico do Refúgio à arte seja Luísa Constantina, mãe do atual proprietário. Tal como Maria Luísa Ataíde, também Luísa Constantina teve formação artística, licenciando-se em escultura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa onde foi, posteriormente, professora assistente. Mas ao contrário daquela, que não morava no Pico do Refúgio, Maria Constantina fez deste o local da sua residência e a fonte de inspiração para muitos dos seus trabalhos. Foi nele que recebeu diversos alunos, numa espécie de residências artísticas e para que também eles sentissem a natureza inóspita, atravessada pela memória do mar e dos sismos, mas foi também ali que, em 1990, organizou um simpósio com diversos escultores internacionais, entre eles Minoru Niizuma.

Talvez não tenha sido, pelo menos de forma totalmente consciente, como homenagem a toda essa história que liga o Pico do Refúgio à ilha de S. Miguel e à arte – micaelense, mas não só -, tendo em conta que as residências artísticas começaram, como afirmou Bernardo Brito e Abreu, de forma espontânea e sem grande planificação, mas foi, sem dúvida, com esse legado histórico presente que, em 2015, o atual proprietário começou um programa de residências artísticas que levou, até à data, mais de 20 artistas contemporâneos à ilha de S. Miguel – sem outra condição, informa-nos, que não seja tomar como tema ou inspiração algo relacionado com a paisagem humana ou natural da ilha. 

Por um acaso feliz, no mesmo ano em que o Pico do Refúgio inaugurou as suas residências artísticas – tendo já constituído um significativo acervo naquela que será uma das mais interessantes coleções privadas de arte de S. Miguel -, é igualmente inaugurado o Arquipélago, um centro de artes contemporâneas situado na Ribeira Grande. Não muito distante do Pico do Refúgio, com uma área de exposição bastante significativa e um programa de envolvimento das diversas ilhas através do serviço educativo, mas não só, o Arquipélago nasce da reconversão de uma antiga fábrica de álcool e tabaco à qual foram acrescentados outros edifícios – em 2015, o projeto com autoria de João Mendes Ribeiro foi nomeado para o Prémio Europeu de Arquitetura Contemporânea Mies van der Rohe. 

Em simbiose com a ideia de ilha

Com uma programação bastante eclética, mesmo tendo em conta as típicas dificuldades orçamentais que os equipamentos culturais têm – numa entrevista concedida a este jornal, em 2017, Fátima Marques Pereira, diretora do Arquipélago, realça a necessidade de concorrer a apoios e a procura de patrocinadores: “temos o orçamento do governo [regional], mas não podemos viver meramente do orçamento. Estamos sempre a concorrer a apoios, além de eu tentar arranjar sponsors” – as atividades do Arquipélago abrangem o teatro, a música, performances, um número crescente de exposições (de 2 exposições em 2016 passa para 7 em 2017 e 6 em 2018), mostras fotográficas e residências artísticas.

Se é certo que o número crescente de visitantes não é necessariamente índice de uma capacidade de criação de envolvimento comunitário e de integração do Arquipélago dentro da comunidade local, é, no entanto, de realçar o trabalho com as escolas locais – tanto de S. Miguel como das outras ilhas -, o projeto expositivo itinerante da coleção Arquipélago intitulado “Prazer do Espírito e do Olhar” que, em 2018, percorreu as ilhas Graciosa e Santa Maria, e a parceria com outras instituições, de que o Pico do Refúgio é, talvez, um dos melhores exemplos. De facto, desde o início de ambos que a consolidação do percurso tem sido efetuado de forma bastante estreita, com, por exemplo, os open days das residência do Pico a serem feita no Arquipélago ou com a abertura, no passado dia 1 de Maio, da exposição “O Olhar Divergente. As residências Artísticas do Pico como Património Prospectivo”, com curadoria de Miguel von Hafe Pérez, e onde se reúnem as diversas obras, de 22 artistas nacionais e estrangeiros, efetuadas nas residências que Bernardo Brito e Abreu começou a sonhar em 2015.

A toda a história dos Açores, feita de errância, de deslocação perpétua e, tantas vezes, sem retorno, podemos agora começar a juntar o trabalho de consolidação que tanto o Arquipélago como o Pico do Refúgio têm vindo a fazer nos últimos quatro anos e acrescentar, à interessante tradição literária açoriana, o deslocamento perpétuo da arte, que entra numa interessante simbiose com a própria ideia de ilha.