Apenas 37% dos rios com mais de 1000 quilómetros – 246 – permanecem de fluxo livre. Desses, só 23% correm de forma ininterrupta até ao mar. No entanto, estes rios que continuam a fluir livremente – e que os seus mais de 1000 quilómetros os colocam no patamar dos rios de maior extensão – estão largamente restringidos a regiões remotas do Ártico e das bacias da Amazónia e do Congo. Estas são algumas das conclusões de um artigo inédito publicado ontem na revista científica Nature, intitulado Mapping the world’s free-flowing rivers e assinado por uma equipa de 34 investigadores internacionais da Universidade McGill no Canadá, do World Wildlife Fund (WWF) e de outras instituições, que pela primeira vez faz um levantamento da localização e extensão dos rios de fluxo livre em todo o planeta. E se os números compõem um quadro negro, a culpa – à semelhança de tantos outros números pouco animadores que têm vindo a ser revelados pelos cientistas relativamente a diferentes temáticas ambientais – é da ação humana.
De acordo com o estudo, a construção de infraestruturas como barragens, diques ou reservatórios é a principal culpada do estado atual de degradação da conectividade fluvial por todo o mundo – e da diminuição do número de rios de fluxo livre -, mas não só: vários estudos, dizem os investigadores, têm vindo a mostrar que infraestruturas como as referidas estão ligadas à redução de espécies de água doce e terrestres e que a captura de sedimentos no âmbito da construção de barragens pode causar alterações à dinâmica geomórfica dos rios e o encolhimento dos deltas dos rios por todo o mundo.
Em comunicado, o autor principal do estudo, Günther Grill, do Departamento de Geografia da Universidade McGill, explica que “os rios do mundo formam uma rede intrincada com ligações vitais ao solo, às águas subterrâneas e à atmosfera. Os rios de fluxo livre são tão importantes para os humanos como para o meio-ambiente. Contudo, o desenvolvimento económico por todo o mundo está a torná-los cada vez mais raros”. O estudo estima que existam 2,8 milhões de barragens, aos quais se juntam mais de 500 mil quilómetros de rios e canais criados para navegação e transporte, bem como tantos outros sistemas de irrigação e de desvio de águas criados.
Os investigadores assinalam que os planos de construção deste tipo de infraestruturas têm em conta apenas o local ao qual se destinam, não contemplando por exemplo uma análise em relação à bacia ou à zona onde se inserem. Por isso, defendem, “considerando a importância dos rios de fluxo livre, os planos para desenvolver rapidamente novas infraestruturas em bacias em todo o mundo devem ser acompanhados de avaliações estratégicas e transfronteiriças abrangentes do seu impacto e devem ter em conta vias de desenvolvimento alternativas para minimizar as consequências nocivas”. Num mundo em que a hidroeletricidade está a crescer a passos largos – ocupando também um lugar na lista das ameaças que os rios enfrentam – e que a mudança para economias de baixo carbono está a começar, os autores do estudo assinalam ainda que “são necessários sistemas voltados para o futuro no que diz respeito à energia e à hidroeletricidade, […] para minimizar a perda de funções do rio, ao mesmo tempo que se cumprem as metas energéticas. Igualmente importante é a necessidade de encontrar soluções sustentáveis para colmatar a lacuna entre a procura de irrigação e stresse hídrico extremo”.
Rios: a “força vital” do planeta
No comunicado divulgado, a investigadora Michele Thieme, principal cientista de água doce da WWF e líder global da iniciativa da entidade ‘free-flowing rivers’ defende que “os rios são a força vital do nosso planeta. Providenciam diversos benefícios que são frequentemente negligenciados e subvalorizados. Este primeiro mapa dos rios de fluxo livre remanescentes no mundo ajudará os decisores a priorizar e a proteger o pleno valor que os rios representam para as pessoas e a natureza”. Relativamente à produção de energia, Thieme também em algo a dizer. “A energia renovável é como uma receita – tem de se encontrar a mistura certa de ingredientes para se assegurar tanto uma rede de energia sustentável, como uma natureza próspera. Enquanto a energia hídrica tem inevitavelmente um papel na paisagem da energia renovável, a energia eólica e a energia solar bem planeadas podem ser opções mais viáveis para os rios e as populações, cidades e a biodiversidade que dependem deles”.
De resto, além da sua utilização para fins de abastecimento de água – para consumo humano, mas também para agricultura e outras finalidades variadas – e para fins energéticos, os rios são também uma fonte de alimento. Isso é especialmente evidente nos rios de fluxo livre com maior extensão (mais de 1000 quilómetros) e grande extensão (500-1000 quilómetros), como assinalam os autores do artigo: “De especial preocupação é a perda de conectividade de rios com maior extensão e com grande extensão ao mar porque são de importância vital para a troca de água, nutrientes, sedimentos e espécies entre deltas, estuários e o oceano”. Neste contexto, o estudo exemplifica com dois rios de fluxo livre com mais 1000 quilómetros de extensão, os últimos do sudeste asiático: o Rio Irauádi e o Rio Salween, “fontes fundamentais de proteína de pescas interiores, providenciando mais de 1,2 milhões de toneladas de captura anualmente, e os seus regimes de caudais mantêm a agricultura de planícies de inundação extensiva numa região habitada por mais de 30 milhões de pessoas”.
As alterações climáticas, mais uma vez
Da mesma forma que se assumem como um desafio em tantos outros âmbitos, os rios não escapam aos impactos das alterações climáticas. “As alterações climáticas globais […] vão aumentar ainda mais a pressão nos rios e na sua conectividade através de alterações nos padrões de fluxo e intermitência, bem como alterações na frequência, magnitude e periodicidade de secas ou cheias e na qualidade da água e das comunidades biológicas”, escrevem os investigadores, notando que “os rios de fluxo livre podem aumentar a resiliência dos ecossistemas aquáticos sob esta pressão adicional porque oferecem via abertas para as espécies se movimentarem para habitats adequadas noutras partes da bacia, em resposta ao aumento de temperaturas ou outras mudanças”. Os dados e metodologias que o estudo reúne, concluem os seus autores, podem ajudar a melhorar o estado dos rios a nível global – o tema, frisa ainda o estudo, está na Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável da comunidade internacional.