Uma noite de copos acabou com uma visita ao hospital. A culpa foi do excesso de álcool e das trotinetes que invadiram a cidade de Lisboa desde o ano passado. Há dois meses, Pedro Almeida saiu da discoteca, em Santos, e achou que o meio mais seguro para se deslocar até ao Terreiro do Paço seria a trotinete. “Há uma em cada esquina, por isso não tive de andar muito até encontrar duas”, conta, explicando que estava acompanhado por um amigo. Estavam junto ao metro da estação do Cais do Sodré quando um buraco e o pouco equilíbrio que tinha devido ao álcool o fizeram cair. “Tive de ir à urgência e parti um osso da cara, ainda fui ao bloco operatório, mas foi uma coisa simples”.
As trotinetes não fazem restrições, todos as podem usar e muitas vezes a segurança dos utilizadores fica comprometida. Alguns médicos contactados pelo i revelaram que todos os dias, pelo menos uma pessoa é encaminhada para as urgências devido a quedas ou atropelamentos causados por estes veículos.
Na cidade de Lisboa já foram construídas inúmeras vias para a circulação das trotinetes e bicicletas. No entanto, há ainda partes dos percursos que se cruzam com a estrada onde circulam os automóveis. Por esta razão, os atropelamentos são também comuns. “Ainda ontem vi uma rapariga que tinha sido atropelada por um carro. Ela disse que ia na via destinada às trotinetes, mas num cruzamento foi atropelada por um carro, mandada ao chão e partiu uma costela”, contou uma médica que faz urgência no hospital de São José.
Fraturas dos ossos da face – especialmente da mandíbula –, fraturas da tíbia e do fémur são os resultados mais comum das quedas aparatosas de trotinetes, relatam os médicos. Na cara, por exemplo, há quem frature a mandíbula (maxilar) e, nesses casos, é necessário ser submetido a uma cirurgia: “Esta fratura requer operação e o pós-operatório é dos mais complicados”, diz a médica.
Os dentes também não escapam à loucura das viagens de trotinete e há mesmo quem fique sem eles, sobretudo quando o fator álcool está também presente. E, claro, grande parte dos acidentes dá-se durante a noite, com os jovens a liderar a lista etária.
No início do ano, a PSP registou uma multa de 250 euros a um jovem de 18 anos que andava de trotinete bêbado na Rua Cintura do Porto, em Lisboa. Com 1,08 gramas de álcool por litro de sangue, o jovem serviu, segundo a PSP, como exemplo de alerta para os utilizadores destes veículos.
O número total de acidentes que resultam numa visita ao hospital não é conhecido. E parece também que nunca chegam a ser transmitidos às operadoras das respetivas trotinetes. O i entrou em contacto com algumas e apenas uma das operadoras disse ter o registo de um acidente: a Hive. “Até à data registámos apenas um acidente que se deveu ao uso incorreto do nosso serviço, isto é, duas pessoas na mesma trotinete”, referiu Joana Pereira Correia, porta-voz da empresa. A empresa Bungo nunca registou acidentes e a Lime explicou que “o número de acidentes registados é muito residual”.
Um risco para a saúde pública nos EUA
O Centers for Desease Control (CDC) – Centro de Controlo e Prevenção de Doenças –, do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, centrou-se neste tema e estudou os impactos do novo fenómeno dos transportes. E chegou à conclusão de que as trotinetes são um risco para a segurança pública.
O CDC revelou na última quarta-feira o resultado da sua análise e descobriu que os ferimentos na cabeça estão no topo da lista dos acidentes – pelo menos 45% dos acidentes resultam em ferimentos na cabeça. Desta percentagem, 27% foram lesões na parte superior e 12% na parte inferior da cabeça.
O estudo também indica que a maior parte dos acidentes poderiam ser evitados: “Uma alta proporção de lesões relacionadas às trotinetes envolveu fatores de risco potencialmente evitáveis, como a falta de uso de capacete ou a interação com veículos motorizados”. Em três meses, “a taxa de lesões por trotinete foi de 14,3 por cada 100 000 viagens”, diz o estudo. Além disso, a média de idades fixou-se nos 29 anos, 18% dos acidentes envolveu carros e às vezes é só preciso um buraco para causar um acidente.
Estrangeiros ficam a conhecer hospitais portugueses
No Parque das Nações contam-se dezenas de trotinetes espalhadas – umas devidamente estacionadas, sem incomodar quem precisa dos passeios, e outras no chão –, mas veem-se sobretudo estrangeiros a aderir ao meio de transporte da moda.
A aproveitar o sol junto ao rio Tejo, passeiam quatro austríacos de trotinete. Enquanto procuravam o Pavilhão do Conhecimento, explicaram ao i que quando fizeram a pesquisa sobre os meios de transporte a utilizar em Portugal, as trotinetes apareciam mencionadas muitas vezes. “Com este tempo maravilhoso, não queremos andar de metro ou autocarro, só se for mesmo necessário”, contam. É por isso que as trotinetes são o meio de eleição, não só de quem vai para o trabalho todos os dias, mas também para quem visita o país.
Mas as quedas não escolhem nacionalidades e Hans, um dos austríacos, contou que o problema maior são os buracos. “No primeiro dia, ainda não estava bem habituado e quase caí por causa dos buracos e em Lisboa há muitos”, disse. Os estrangeiros, segundo disseram os médicos, também vão muitas vezes às urgências, “ou porque caem, ou porque são atropelados. Querem experimentar, acham que é muito giro e depois corre mal”, dizem os especialistas em saúde.
Aqui, surge uma questão importante, também levantada por alguns médicos: “andar de trotinete é bom para o ambiente, mas coloca, claramente, a segurança das pessoas em risco, porque quando se tira a carta, por exemplo, não se aprendeu a lidar com este fenómeno”.
Vale tudo: nas árvores, nos caixotes ou na água
Catarina Oliveira desloca-se todos os dias de trotinete até ao trabalho – é mais barato e sabe que chega sempre a horas. Assegura que nas suas viagens de casa até ao escritório de contabilidade nunca teve nenhum acidente, mas há um ponto que não joga a favor deste meio de transporte: o estacionamento desordenado. “Há uma falta de noção das pessoas que estacionam no meio do passeio e de quem coloca as trotinetes em sítios ridículos, é de quem não tem mais nada para fazer”, diz. Relativamente ao custo, andar ao cêntimo em Lisboa pode compensar, já que se gasta um euro para desbloquear uma trotinete e 15 cêntimos por minuto.
Todos os dias se veem trotinetes mal estacionadas. Contactada pelo i, Joana Pereira Correia, porta-voz da Hive – uma das operadoras de trotinetes em Portugal – deu alguns exemplos de sítios onde aparecem estes veículos: “Em cima de árvores, em canteiros e dentro de caixotes do lixo”, adiantando que “também surgem trotinetas vários quilómetros fora da zona” onde a Hive opera. Sobre esta questão, a Câmara Municipal de Lisboa anunciou no mês passado que, até 2021, serão reconvertidos pelo menos 1600 lugares de estacionamento que vão ser utilizados para o estacionamento de trotinetas.
Os números relativos às trotinetes são significativos e Miguel Gaspar, vereador da Mobilidade na Câmara Municipal de Lisboa, anunciou no mês de março que existem cerca de cinco mil trotinetes na capital e são efetuadas perto de dez mil viagens por dia. Num total de sete operadoras, os utilizadores ultrapassam os 150 mil e já foram percorridos mais de um milhão de quilómetros. A propósito de um pedido do CDS – que foi rejeitado – para elaborar um estudo sobre o sistema partilhado de trotinetes, o vereador admitiu que “cada lugar de estacionamento pode ser utilizado por um automóvel, dez trotinetes ou cinco bicicletas”. Além disso, o responsável pela pasta da mobilidade garantiu que o estudo já está a ser feito pela direção municipal da Mobilidade.
O sinal de GPS permite encontrar sempre as trotinetes, mesmo que estejam em mau estado, ou dentro de água. Foi por este motivo que, por exemplo, no passado domingo, o corpo de um jovem desaparecido há uma semana foi encontrado na zona da Expo. Um utilizador que procurava uma trotinete foi encaminhado para um local onde ao lado da trotinete, dentro do rio, estava o corpo do jovem que desapareceu depois de ter saído de uma discoteca no Parque das Nações.
Cientes dos problemas de estacionamento desordenado que estes veículos provocam, as operadoras têm colaboradores nas ruas da cidade de Lisboa que são responsáveis por retirar as trotinetes dos sítios indevidos. “Temos uma equipa – “hive bees” – que desde dezembro percorre as zonas com maior movimento de trotinetes na cidade de Lisboa e onde é detetado um maior número de trotinetes mal estacionadas”, explicou a porta-voz da Hive. A equipa “recolhe e organiza trotinetes que estejam mal estacionadas, caídas no chão ou a ocupar indevidamente a via pública e recolocam-nas em zonas de estacionamento de trotinetes ou em locais apropriados”.
Também a Lime, a empresa que conta com um maior número de trotinetes na cidade de Lisboa explicou que “os registo de trotinetas estacionadas de forma inadequada é residual”. O porta-voz da empresa, Luís Pinto, disse ao i que a Lime tem agora a “Patrulha Lime, uma equipa que patrulha as principais artérias da cidade, ruas com passeios estreitos e outros locais em que as trotinetes são usadas com frequência, e ajuda na sua organização, estacionando-as nos hotspots mais próximos”. Em caso de perda de GPS, que inevitavelmente acontece, a Lime, por exemplo, “liga imediatamente para a polícia”.
Há quem faça negócio
As trotinetes são amigas do ambiente e chegaram para substituir os carros na cidade. No entanto, estes veículos de duas rodas têm de ser carregados. Então, o que acontece é o seguinte: normalmente, durante a noite, as trotinetes são recolhidas por utilizadores que as levam nos seus carros. Há quem faça isto e consiga algum dinheiro – carregar uma trotinete VOI, por exemplo, dá uma remuneração entre três e dez euros. O valor depende da “facilidade de recolha, tempo que a trotinete esteve na rua sem bateria, e também quão tarde é”, lê-se no site desta empresa.
No fundo, só é necessário pegar numa trotinete sem carga, levar para casa e devolver no dia seguinte entre as cinco e a sete da manhã. Para isto, a VOI coloca apenas um requisito, além de ser necessário ter 18 anos: “preferencialmente deves ter carro, carrinha ou outra maneira de transportar as nossas trotinetes para o local de carregamento e para as voltar a colocar nos locais indicados”. Neste caso, os carros estarão sempre presentes.