Reconhecemos a definição baudelairiana da paisagem como projecção da alma quando Caspar David Friedrich regista, em modo aforístico, que “o pintor deve pintar não só o que vê diante de si como também aquilo que vê em si”.
Nascido em Greifswald, no mar Báltico, a 5 de setembro de 1774, e falecido, faz hoje 179 anos, a 7 de maio de 1840, Caspar David Friedrich, o sexto de dez filhos, teve a morte inscrita na alma desde muito cedo: o desaparecimento da mãe e de uma das irmãs com apenas 7 anos de idade, a morte de outro irmão por afogamento, aos 13, ao que se sabe, aquele a tentar salvá-lo no mar (e a culpa sempre presente), e o passamento da irmã Maria, aos 17, o criador da “tragédia da paisagem”, na expressão do escultor David d’Angers, que o visitou em Dresden em 1834, Caspar David Friedrich foi um ser taciturno e um místico.
Filho de um protestante, severo e puritano, mas um próspero comerciante, Caspar David frequentou as aulas de Johann Gottfried Quistorp, professor na Universidade de Greifswald, com quem descobre o pintor alemão Adam Elsheimer (1578-1610), que se servia bastante da paisagem nocturna nos segundos planos dos seus temas religiosos (eis uma das suas influências), e depois a Academia Real de Copenhaga, onde pôde admirar uma rica colecção de pintura holandesa do século XVII que igualmente o marcou.
A defesa de uma posição alegadamente antimoderna, o forte acento posto na história alemã, na religiosidade e na espiritualidade – características do romantismo em geral – parecem não se ajustar à sociedade de massas, moderna e industrial que estava prestes a surgir. Mesmo as paisagens despovoadas dos seus quadros, o tema da destruição da natureza pelos homens, parecem confirmar esses sinais de fuga à realidade. A crítica ao romantismo, formulada, por exemplo, por Thomas Mann, de que o seu anseio de um mundo melhor, ainda que inatingível, seria basicamente um anseio da morte, confirma o veredicto de que Friedrich seria o exemplo de um artista anacrónico, motivo porque terá caído no esquecimento durante um século. Mas terá sido realmente assim?
Para Rosenblum, historiador da arte, a questão é outra. A história da pintura moderna apresentaria dois caminhos de desenvolvimento: a tradição do impressionismo francês, passando por Edouard Manet, Picasso e Matisse, e a tradição do romantismo nórdico que, a partir de Caspar David Friedrich, passando por Carl Gustav Carus e Johan Clausen Dahl, até chegar a Edvard Munch, teria influenciando o surrealismo – como por exemplo Max Ernst, Salvador Dalí e Miró, bem como o expressionismo americano, Barnett Newman, Jackson Pollock e Mark Rothko. Além disso, num certo sentido, ainda influenciados por esta tradição terão sido Paul Klee, Kasimir Malevich, Piet Mondrian, Wassily Kandinsky, Gerhard Richter e até Anselm Kiefer. Perante este panorama histórico-artístico, estaria encontrada a resposta.
Mas venhamos ao Mar Polar (1824): uma reportagem fotográfica realizada depois de uma colisão ou de um terremoto dá-nos a mesma sensação de confusão que nos surge perante a pintura de um naufrágio no Árctico.
É difícil saber o que sucedeu exactamente aqui. Procuramos decifrar os sinais e reconstituir o acontecimento, mas as pistas contradizem-se. Afastamo-nos com um sentimento de impotência e de temor perante o poder de forças que estão para além do nosso controlo e entendimento. Ao contrário do repórter fotográfico, Caspar não esteve no local. Imaginou o naufrágio. Como a maior parte das suas cenas, esta foi realizada no seu estúdio, perto de Dresden. É verdade que há referências a estudos sobre o gelo no rio Elba, efectuados por ele uns anos antes. No entanto, nenhuma das paisagens que viu nas suas viagens – desde as costas do Báltico às florestas da Boémia – era tão desoladora como esta (na imagem).
Se nos detivermos e observarmos com atenção, temos de fazer um esforço para olhar de uma forma diferente da habitual: somos obrigados a vencer o horror da força esmagadora sentido perante estes blocos, mas também a sua estranha beleza. E precisamos de abandonar o sentido da escala humana que nos dá o casco do navio naufragado, bem como a ideia que temos de uma marinha.
Estes fragmentos e placas brilhantes, coisas para as quais dificilmente temos um nome, não têm lugar no tipo de cenas de paisagem habituais. É como se tivéssemos de andar às apalpadelas, de aprender a ver a Natureza nas suas próprias relações.
Como muitos pintores e poetas do seu tempo, Caspar fez da paisagem o tema principal da sua obra. Pintou-a em todas as suas variedades, desde a calma dos prados de Greifswald, perto da sua cidade natal, à épica majestade dos picos de montanha, cavernas e penhascos escarpados.
Para Friedrich, uma pintura não era mais nem menos do que um meio pelo qual a visão íntima de cada um se reproduz na mente dos outros. Todavia, talvez não devamos levá-lo inteiramente à letra. Apesar dos esforços do pintor para realçar o elevado nível com que os seus quadros foram trabalhados, O Mar Polar constitui, de facto, um excelente registo das preocupações da década de 1820, altura em que foi pintado, um mundo em que os heróis combatiam as forças da natureza. Como dizia um editorial do Times na altura: “Em nossa opinião, o hemisfério Sul apresenta-se como um campo muito tentador para a especulação; e desejamos de todo o coração que haja uma expedição que lá chegue.”
Em 1819, numa tentativa de descoberta da Passagem do Noroeste, foi realizada uma expedição ao Pólo Norte pelo inglês William Edward Parry que despertou a atenção do público em toda a Europa. O drama das expedições ao Árctico, com os barcos encalhados, despertava um grande espírito de aventura, especialmente por causa do terror do cenário: o deserto gelado, inconcebivelmente distante. Veja-se a série que ainda recentemente passou na televisão, The Terror, de Ridley Scott: a luta pela sobrevivência da guarnição do navio, cercada por condições extremas, obrigada a lidar com recursos escassos e limitados e assolada pelo medo do desconhecido e a falta de esperança.
O quadro de Friedrich (O Mar Polar) possui os pormenores próprios de uma notícia, mas ele evoca também um cenário como o fazem as pinturas de paisagem. No entanto, aqui tudo está concentrado numa imagem simbólica perturbante, ainda que esteticamente interessante.
E os olhos do artista aprenderam a trabalhar cuidadosamente a tela para que ela possa ter o efeito desejado. O do combate das forças da natureza e, nele, a luta que o homem consigo mesmo trava. A dimensão simbólica é evidente: por oposição ao afundamento do navio, o gelo eleva-se para o céu, para o absoluto, inseparável da morte, num movimento de transcendência e de sublimação, características do romantismo.
Em suma, Caspar David Friedrich, ainda hoje nos deixa o sabor amargo do negrume da natureza com o qual, hélas, nos deliciamos. Malgré nous.