O outro Chamberlain e o nazismo


O nazismo mergulhou as suas raízes no racismo, numa suposta “religião germânica” e num movimento populista (völkish) que já vinham de longe.


Não. É óbvio que não se trata aqui de Neville Chamberlain (1869-1940), o primeiro-ministro britânico (entre 1937 e 1940) mais conhecido por ter defendido, juntamente com o então presidente do Conselho francês, Edouard Dalladier (1884-1970), uma política de “apaziguamento” em relação Hitler, consagrada no Acordo de Munique, de Setembro de 1938, quando o Führer já anexara a Áustria (o Anschluss) e preparava-se para anexar o território dos Sudetas, pertencente à Checoslováquia.

Trata-se aqui de Houston Stewart Chamberlain (1855-1927), filósofo racista e apóstolo do “germanismo”, que nasceu britânico (em Southsea, no Hampshire), naturalizou-se alemão por convicção, casou com uma filha do compositor Richard Wagner, Eva von Bülow-Wagner, e morreu em Bayreuth, o “templo” do compositor e das suas óperas, após uma vida inteira a defender a superioridade da raça ariana. Admirava Adolf Hitler, que o visitou e lhe beijou as mãos quando já estava no leito de morte.

Também neste caso se dirá que houve uma “parceria” com um francês, o diplomata Arthur de Gobineau (1816-1882), autor de um Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853), entre outros escritos em que “recorreu a um quadro expressamente racial da história humana” e “negou que as instituições do cristianismo, os governos e as ideias – que ele qualificava como ‘superstições’ – fossem os agentes funcionais da história ou as causas da ascensão e declínio das civilizações”, porque “só a raça é que era o factor determinante” – como bem explicou o grande historiador alemão, judeu exilado, George L. Mosse (1918-1999), no admirável ensaio sobre a crise da ideologia alemã e as raízes intelectuais do Terceiro Reich, publicado em 1964.

Ora, foi graças ao apoio entusiástico do “círculo de Richard Wagner” e de um dos seus mais destacados membros, Ludwig Schemann, que as ideias racistas de Gobineau, das quais Schemann era adepto fanático, começaram a ser introduzidas na Alemanha e a ter influência considerável, no início do século XX. “Só a Alemanha poderia mostrar-se receptiva às ideias de Gobineau”, escreveu Schemann. Mas seria H. S. Chamberlain o mais importante dos teóricos que propugnavam o “desenvolvimento de uma raça que salvaria a cultura ocidental e lhe imprimiria a sua marca específica”. À semelhança do que sucedera com as ideias de Schemann – explica George L. Mosse – as ideias de H. S. Chamberlain também “foram estimuladas pelo círculo de Wagner em Bayreuth, cujos membros consideravam o ciclo do Ring (tetralogia do Anel ) como o evangelho da raça germânica”, e Wagner “o profeta do germanismo”. Uma tradição que seria transmitida por outra das filhas de Wagner, Winnifred, a qual, após a chegada de Hitler ao poder, em 1933, faria do Festival de Bayreuth um ritual nacional-socialista.

A transformação do filósofo H. S. Chamberlain num racista virulento foi impulsionada pelo seu encontro com a obra de Wagner, obra que o levaria a consagrar-se, a partir de 1882, “à preservação e difusão da concepção do mundo segundo Wagner”, fazendo de Bayreuth “a morada da sua alma”, e da sua vida com a mulher, filha do compositor. Ao contrário de Gobineau, H. S. Chamberlain era um optimista. Segundo Gobineau, a raça mais pura era a dos Arianos, cujas qualidades profundas eram inseparáveis da sua aparência exterior, representavam a aristocracia num mundo de raças inferiores – “a aspiração à força e à conquista estavam na sua natureza” – mas a sua contaminação pelo sangue de raças inferiores, infiltradas nas fileiras da aristocracia, conduziria a um rápido declínio das suas realizações culturais e nacionais e, inclusive, à morte da raça. Já H. S. Chamberlain era um optimista inabalável, cujo livro sobre Os fundamentos do século XIX, publicado em 1900, foi um enorme sucesso na Alemanha e teve profundo impacto no chamado “pensamento völkisch” (étnico, folclórico, popular, nacional), ao defender que o racismo não era propriamente a história da ascensão e declínio de uma civilização, mas sim a esperança da humanidade e a concretização das suas aspirações. H.S. Chamberlain não tinha dúvidas de que, por um lado, a ciência alemã determinava com grande exactidão a existência de “valores raciais intrínsecos” (aqui citava Kant), e que, por outro lado, havia uma “religião germânica” a abrir perspectivas infinitas para a alma alemã. Mas a religião tinha precedência, dado que podia, por si só, penetrar na essência das coisas, impulsionando um “idealismo da acção” que brotava do interior da alma através do seu contacto místico com o cosmos. De caminho, H. S. Chamberlain refutava o “judaísmo” de Cristo e proclamava que nenhum homem de ciência poderia negar que as dimensões dos crânios e a aparência exterior do cérebro influenciavam directamente as concepções e a forma estética intrínseca de uma raça.

Há quem diga – e eu vi escrito há dias – que “o nacional-socialismo alemão” era “uma teoria e praxis totalitária ateia”. Mas o termo “ateia” está a mais, fruto da ignorância de quem o escreveu. Desviando-me por instantes de ensaios académicos, diria que até Steven Spielberg explicou bastante bem os fundamentos religiosos do nazismo, no seu filme Os Salteadores da Arca Perdida (1981). De facto, as vincadas tendências para o irracional e o emocional do chamado “movimento völkisch” – interpretação alemã do movimento populista com enfoque no folclore do país, à semelhança do movimento romântico europeu do século XIX – eram resultantes da chamada “fé germânica”, cuja evolução, “profetizava” Paul Lagarde (1827-1891), se assemelharia a uma progressão a partir duma fonte original, assim como a evolução dinâmica do espírito religioso dum indivíduo a partir da revelação da sua fé intrínseca, para finalmente ser possível atingir uma relação mística consciente com o cosmos, ou seja, com um Deus.

O nazismo mergulhou as suas raízes no racismo, numa suposta “religião germânica” e num movimento populista (völkish) que já vinham de longe. Confesso que nunca tinha sido confrontado com uma explicação filosófica e histórica tão minuciosa e profunda – como a de George L. Mosse – que vai muito além da enumeração e interpretação dos factos históricos imediatamente anteriores à ascenção de Hitler ao poder, à eclosão da II Guerra Mundial, aos campos de concentração, às terríveis “experiências” efectuadas sobre seres humanos, às câmaras de gás, aos fornos crematórios, ao “holocausto”. De facto, só a ignorância da história pode explicar o actual fascínio pelos movimentos de extrema-direita aparentados com o franquismo, o fascismo e o nazismo. 

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

O outro Chamberlain e o nazismo


O nazismo mergulhou as suas raízes no racismo, numa suposta “religião germânica” e num movimento populista (völkish) que já vinham de longe.


Não. É óbvio que não se trata aqui de Neville Chamberlain (1869-1940), o primeiro-ministro britânico (entre 1937 e 1940) mais conhecido por ter defendido, juntamente com o então presidente do Conselho francês, Edouard Dalladier (1884-1970), uma política de “apaziguamento” em relação Hitler, consagrada no Acordo de Munique, de Setembro de 1938, quando o Führer já anexara a Áustria (o Anschluss) e preparava-se para anexar o território dos Sudetas, pertencente à Checoslováquia.

Trata-se aqui de Houston Stewart Chamberlain (1855-1927), filósofo racista e apóstolo do “germanismo”, que nasceu britânico (em Southsea, no Hampshire), naturalizou-se alemão por convicção, casou com uma filha do compositor Richard Wagner, Eva von Bülow-Wagner, e morreu em Bayreuth, o “templo” do compositor e das suas óperas, após uma vida inteira a defender a superioridade da raça ariana. Admirava Adolf Hitler, que o visitou e lhe beijou as mãos quando já estava no leito de morte.

Também neste caso se dirá que houve uma “parceria” com um francês, o diplomata Arthur de Gobineau (1816-1882), autor de um Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853), entre outros escritos em que “recorreu a um quadro expressamente racial da história humana” e “negou que as instituições do cristianismo, os governos e as ideias – que ele qualificava como ‘superstições’ – fossem os agentes funcionais da história ou as causas da ascensão e declínio das civilizações”, porque “só a raça é que era o factor determinante” – como bem explicou o grande historiador alemão, judeu exilado, George L. Mosse (1918-1999), no admirável ensaio sobre a crise da ideologia alemã e as raízes intelectuais do Terceiro Reich, publicado em 1964.

Ora, foi graças ao apoio entusiástico do “círculo de Richard Wagner” e de um dos seus mais destacados membros, Ludwig Schemann, que as ideias racistas de Gobineau, das quais Schemann era adepto fanático, começaram a ser introduzidas na Alemanha e a ter influência considerável, no início do século XX. “Só a Alemanha poderia mostrar-se receptiva às ideias de Gobineau”, escreveu Schemann. Mas seria H. S. Chamberlain o mais importante dos teóricos que propugnavam o “desenvolvimento de uma raça que salvaria a cultura ocidental e lhe imprimiria a sua marca específica”. À semelhança do que sucedera com as ideias de Schemann – explica George L. Mosse – as ideias de H. S. Chamberlain também “foram estimuladas pelo círculo de Wagner em Bayreuth, cujos membros consideravam o ciclo do Ring (tetralogia do Anel ) como o evangelho da raça germânica”, e Wagner “o profeta do germanismo”. Uma tradição que seria transmitida por outra das filhas de Wagner, Winnifred, a qual, após a chegada de Hitler ao poder, em 1933, faria do Festival de Bayreuth um ritual nacional-socialista.

A transformação do filósofo H. S. Chamberlain num racista virulento foi impulsionada pelo seu encontro com a obra de Wagner, obra que o levaria a consagrar-se, a partir de 1882, “à preservação e difusão da concepção do mundo segundo Wagner”, fazendo de Bayreuth “a morada da sua alma”, e da sua vida com a mulher, filha do compositor. Ao contrário de Gobineau, H. S. Chamberlain era um optimista. Segundo Gobineau, a raça mais pura era a dos Arianos, cujas qualidades profundas eram inseparáveis da sua aparência exterior, representavam a aristocracia num mundo de raças inferiores – “a aspiração à força e à conquista estavam na sua natureza” – mas a sua contaminação pelo sangue de raças inferiores, infiltradas nas fileiras da aristocracia, conduziria a um rápido declínio das suas realizações culturais e nacionais e, inclusive, à morte da raça. Já H. S. Chamberlain era um optimista inabalável, cujo livro sobre Os fundamentos do século XIX, publicado em 1900, foi um enorme sucesso na Alemanha e teve profundo impacto no chamado “pensamento völkisch” (étnico, folclórico, popular, nacional), ao defender que o racismo não era propriamente a história da ascensão e declínio de uma civilização, mas sim a esperança da humanidade e a concretização das suas aspirações. H.S. Chamberlain não tinha dúvidas de que, por um lado, a ciência alemã determinava com grande exactidão a existência de “valores raciais intrínsecos” (aqui citava Kant), e que, por outro lado, havia uma “religião germânica” a abrir perspectivas infinitas para a alma alemã. Mas a religião tinha precedência, dado que podia, por si só, penetrar na essência das coisas, impulsionando um “idealismo da acção” que brotava do interior da alma através do seu contacto místico com o cosmos. De caminho, H. S. Chamberlain refutava o “judaísmo” de Cristo e proclamava que nenhum homem de ciência poderia negar que as dimensões dos crânios e a aparência exterior do cérebro influenciavam directamente as concepções e a forma estética intrínseca de uma raça.

Há quem diga – e eu vi escrito há dias – que “o nacional-socialismo alemão” era “uma teoria e praxis totalitária ateia”. Mas o termo “ateia” está a mais, fruto da ignorância de quem o escreveu. Desviando-me por instantes de ensaios académicos, diria que até Steven Spielberg explicou bastante bem os fundamentos religiosos do nazismo, no seu filme Os Salteadores da Arca Perdida (1981). De facto, as vincadas tendências para o irracional e o emocional do chamado “movimento völkisch” – interpretação alemã do movimento populista com enfoque no folclore do país, à semelhança do movimento romântico europeu do século XIX – eram resultantes da chamada “fé germânica”, cuja evolução, “profetizava” Paul Lagarde (1827-1891), se assemelharia a uma progressão a partir duma fonte original, assim como a evolução dinâmica do espírito religioso dum indivíduo a partir da revelação da sua fé intrínseca, para finalmente ser possível atingir uma relação mística consciente com o cosmos, ou seja, com um Deus.

O nazismo mergulhou as suas raízes no racismo, numa suposta “religião germânica” e num movimento populista (völkish) que já vinham de longe. Confesso que nunca tinha sido confrontado com uma explicação filosófica e histórica tão minuciosa e profunda – como a de George L. Mosse – que vai muito além da enumeração e interpretação dos factos históricos imediatamente anteriores à ascenção de Hitler ao poder, à eclosão da II Guerra Mundial, aos campos de concentração, às terríveis “experiências” efectuadas sobre seres humanos, às câmaras de gás, aos fornos crematórios, ao “holocausto”. De facto, só a ignorância da história pode explicar o actual fascínio pelos movimentos de extrema-direita aparentados com o franquismo, o fascismo e o nazismo. 

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990