Não foi por esse mais vulgar desespero de quem na terra não acha a que se agarrar que Graham Greene se virou para o catolicismo. Mais que a fé, terá gostado de se agasalhar sentindo o frio dessa sombra que nos trespassa o espírito. Deus ou a sua ausência são hipóteses simetricamente inquietantes. E se seria quase impossível imaginar que tipo de escritor teria sido caso não se tivesse convertido ao catolicismo, Ruth Franklin diz que soube tirar mais da dúvida, desconfiando da sua capacidade para dar o salto que a fé em Deus pede – essa “rendição incondicional, que transforma o santo em pecador”. Greene soube, assim, hesitar apaixonadamente. Talvez valha de alguma coisa lembrar que foi um miúdo dolorosamente tímido, sem a menor desenvoltura atlética, de tal modo que a depressão na adolescência o levou a cultivar um certo fascínio pelo suicídio. Para lá das mais ou menos sérias tentativas confirmadas pelos biógrafos, no artigo saído há década e meia na The New Yorker ("God in the details"), Franklin não deixa de notar que a profunda ambivalência de Greene em relação a Deus era ainda um sinal da forma como mantinha consigo mesmo um jogo de roleta russa metafísica.
Falando no “realismo religioso” deste autor, a ensaísta norte-americana defende que, enquanto cristão, foi das suas falhas que despontaram as virtudes do romancista, pois a verdadeira devoção deste está com a humanidade, e não com a divindade. E nisto, Franklin ecoa a prece que Greene formulou certa vez: “Alguns de nós estão vocacionados para o amor a Deus. Ao passo que a vocação de outros é amar um ser humano. Esperemos que a minha vocação não seja desperdiçada”.
Mas não iríamos muito longe se tentássemos enfiar Greene nalgum martirológio, desde logo porque mesmo a sua conversão ao catolicismo tem uma saia presa pelo meio. Foi compelido a isso nos tempos de estudante em Oxford, depois de se apaixonar por Vivien Dayrell-Browning. Ela havia feito a sua conversão na adolescência e recusava entregar-se-lhe sem que ele fizesse o mesmo. É claro que a posteridade há-de falar por alto, referindo-se a ele como o “romancista católico”, mas o que é certo é que, enquanto perseguia avidamente Vivien, terá buscado o conselho de um amigo, que pôs as coisas em termos que qualquer leigo entenderia: “Se é esse o preço a pagar por uma queca, então seja.”
Não se trata apenas de que as motivações para a sua conversão não fossem as mais pias, mas, para o que nos interessa aqui, é bom notar que há uma tensão que parece puxá-lo em direções contrárias. Assim, no artigo já citado, é referido que certa vez falou de três versos de Browning que poderiam servir como epígrafe de qualquer um dos seus romances: “O que nos interessa está nesse perigoso limiar das coisas./ O ladrão honesto, o carinhoso homicida,/ O ateu supersticioso.”
Em momentos decisivos, fica claro que Greene não estava disponível para trair o seu discernimento a favor das superstições e do mistério que a Igreja nos oferece para aplacar essas quase luciferinas pulsões, o que nos prende à vigorosa concretude do mundo, a carnalidade que impede tantos espíritos formidáveis de voltarem as costas ao mundo em nome de uma qualquer convicção apaziguadora. Triunfa, por isso, na obra de Greene a atenção ao detalhe que faz dele um tão sagaz observador, um escritor que leva o leitor a estimar as qualidades que levariam a que o escolhesse como seu guia num espinhoso contexto social.
Não é difícil supor que, numa conversa com Greene, este não demoraria a pôr-nos a par de mexericos divinais, desses suculentos detalhes, poupando-nos aos outros. Um autor cuja dedicação à escrita corre num plano não muito distinto daquele que o levou a dedicar-se à espionagem, não por uma adesão a ideais ou valores patrióticos, mas pela hipótese de afiar os seus instintos, estudando os diferentes tipos de nó com que se ata o caráter das figuras que contam para alguma coisa.
Em tantas das páginas de Santos e Pecadores (ed. Livros do Brasil), fica claro como Greene mostra acima de tudo um orgulho na sua argúcia de leitor, sendo a literatura uma forma de codificar e interpretar a vida. Michael Korda, protegido de Greene na adolescência e, mais tarde, seu editor por um período no mercado norte-americano, retratou-o num texto publicado também naquela revista norte-americana, em que fica claro que não era tanto um homem de contradições mas alguém que sabia distribuir os seus ímpetos pelos diferentes níveis da existência. Compreendia e aproveitava-se da vida não se reduzir a uma equação moral, e fazia-se valer da sua complexidade para se tornar atraente junto das mulheres. Diz-nos Korda que, com elas, nunca fez segredo de que era um católico que vivia separado da mulher, mantendo um caso com uma outra mulher que, sendo casada, nunca se resolveu a deixar o marido. Assim, a traição em Graham Greene não envolve qualquer tipo de deceção, mas é a frieza que sabe como a virtude pode encerrar-nos num cárcere, e que funciona mais como uma orientação geral para os espíritos que não se entendem com as entrelinhas nem têm o que fazer às subtilezas. Numa passagem de O Poder e a Glória, Greene nota que “o mundo é todo ele uma única peça: está empenhado em todo o lado na mesma luta subterrânea… não há paz em lugar nenhum onde haja vida; mas há zonas tranquilas e ativas”.
Korda recorda como as mulheres de que se rodeava não apreciavam apenas a sua franqueza como a noção de que de pouco nos vale lutar contra aquilo que nos dá ânimo, pois “a paciência do vício é infinita”. “Isso conferia-lhe, aos olhos delas, um certo arrojo”, diz-nos Korda, “o encanto de um condenado, a sensação de que, se acreditava nas chamas do Inferno, estava perfeitamente disposto a arriscar-se à danação eterna em troca de, como ele dizia, ‘uma boa queca’.”
Centremo-nos agora no livro, começando por saudar esta tão improvável aposta editorial. É estimulante ver chegar às livrarias uma antologia de ensaios, bastante breves na sua maioria, e de um autor que, não estando já fora de moda, se juntou a outras tantas referências sobre a qual se vai acumulando o pó nas estantes. Há edições a que o leitor português já nem acha ter direito, ou não espera encontrar nas livrarias de centro comercial. Quando a edição entre nós parece ter desistido de traçar a linha uns metros à frente (ou mesmo ao lado) da sensibilidade desse público mais afável, e que se deixa conduzir como gado, formando filas de forma ordeira, podendo sempre ser convencido a ler isto ou aquilo, levado pelo interesse de coincidir com os hábitos mais vulgares da sua época, é difícil sondar os desígnios que levam a que, para lá da reedição dos modernos clássicos da literatura de ficção, nos surja uma recolha destas, que à partida não tem condições de deslumbrar quem vive de deslumbres. Reúnem-se aqui textos de crítica literária, outros sobre cinema, intervenções em polémicas hoje soterradas no olvido, e também curiosíssimos ensaios sobre este Papa ou o outro, e figuras históricas como Fidel Castro ou Ho Chi Minh, tão díspares entre si, numa leitura que nos dá a impressão do mundo como caótica e inesgotável fonte para se extrair uma boa intriga, aqueles traços primorosos que permitem à ficção concentrar a realidade em doses e segundo uma harmonia que volta a acertar o nosso relógio com o da vida.
Este é um livro singularíssimo que premeia o leitor que não procura experiências de imersão mas beliscões que o compensem da esterilidade da nossa imprensa cultural. Sem um esforço de coser estas peças desirmanadas, o encanto fica a cargo da firmeza de um autor que admirava à temperatura certa – nem demasiado quente, nem demasiado frio, mas o mais longe possível de uma coisa morna. A distância certa chega a ser exercida como uma ciência, a lucidez leva-o a uma dose moderada de compaixão, e há algo de profundamente consolador na forma serena como o seu juízo recai sobre situações e personalidades sem a soberba de quem pretende salvar ou condenar. Há o reconhecimento de um sentido de graça, a partilha de uma consciência soberana das coisas, um entendimento firme que nos torna cúmplices face a um sentido ulterior. Mais do que os temas, é o tiquetaque de uma lógica que passa ao largo das ideias feitas, nos serve implacáveis retratos num momento e, no seguinte, nos deixa entrever esse aventureiro sem paciência para os modos requintados de se ser covarde, aquele que, em 1935, e seguindo um impulso, viajou para a Libéria, depois de constatar que “o mais confiável dos mapas disponíveis ainda exibia grandes áreas em branco apenas com a palavra ‘Canibais’ escrita”, tendo então desenvolvido um ódio ao imperialismo que o acompanharia até ao fim dos seus dias.
E depois há esse Greene mais velho que, segundo Konder, nutria uma imensa curiosidade e até fascínio por figuras excêntricas e maiores do que a vida. Alguém que, “apesar do seu catolicismo, estava sempre a tentar descobrir a santidade em figuras seculares, valorizando nos outros uma simplicidade e inocência que lhe foram negadas”. Konder nota ainda que os seus últimos livros foram “uma espécie de peregrinação em busca de um tipo diferente de fé”.
No prefácio a esta edição, Pedro Mexia escreve que “a fé de Greene costuma ser descrita como ‘paradoxal’, o que só é estranho para quem veja de fora o catolicismo, tantos são os católicos para quem o paradoxo é uma segunda natureza”. Mas vale a pena assinalar como foi muitas vezes na crítica aos católicos e ao catolicismo que Greene se mostrou mais duro, repudiando a fé como esconderijo, uma eterna negociação consigo mesmo e, por isso, um covarde entretenimento íntimo. Essa fé que serve para que alguns exibam as suas afetações como um conflito interior, sendo depois incapazes de promover alguma mudança, fazer algum bem. Ele cita Blake para nos lembrar que “quem deseje fazer o bem aos seus vizinhos deve fazê-lo nas pequenas ocasiões, pois o bem geral é sempre invocado por canalhas, hipócritas e bajuladores”. Concordando com Charles Waterton, sentencia: “neste país o catolicismo que devia produzir revolucionários produz apenas excêntricos (a excentricidade viceja num sistema social desigual)”. Adianta ainda que “conservadorismo e catolicismo deveriam ser impossíveis aliados”, e no ensaio sobre Ho Chi Minh, nota que “o catolicismo tem algumas palavras em comum com o comunismo, mas está separado do povo pelos cardeais e pelos carros da polícia com sereias ululantes e assessores ocidentais num zumbido permanente sobre estratégia global, quando devia andar a pé sem proteção nos campos de arroz, a aprender à sua custa como ser amado e obedecido”. E ainda cita o Aliosha de Os Irmãos Karamazov, que se despoja de tudo para servir a Deus: “Não posso renunciar a dois rublos em vez de ‘tudo o que tendes’ ou limitar-me a ir todos os dias à missa em lugar de ‘vinde e segui-me’.”
Deixando de lado a validade das suas opiniões, há ainda o facto de a extrema disciplina com que se dedicava à escrita – todos os dias, mal o sol raiava, obrigando-se a escrever 500 palavras nuns pequenos cadernos, e não mais, ao ponto de ficar muitas vezes a meio de uma frase – se tornar aparente na eficácia de uma prosa que não brinca em serviço. Greene parece sempre aplicar-se num resumo para benefício do seu leitor de algo mais vasto, que facilmente poderia tornar-se maçador. A concisão não chega a ser um efeito – pois nada há de estrénuo nesta escrita –, mas é como se um acordo entre duas inteligências se estabelecesse. Algum apreço pela literatura servirá, mas não para lá de um certo ponto, e nunca como refúgio. E a seleção feita por Pedro Mexia – que também assina um prefácio satisfatório –, respeita a parcimoniosa gala deste autor, tendo o cuidado de ser representativa sem ser exaustiva.
Depois, para lá dos absorventes relatórios, das elegantes apreciações seja no campo literário, do cinema ou de outro género, há páginas aqui resgatadas que seria realmente triste se se perdessem. Como quando nos oferece o resumo de um romance que nunca chegou a escrever e que nos faz pensar que mais do que livros de curtas ficções, é nos esboços, nesses esqueletos fantasiosos exibindo marcas de golpes intrigantes, que estão as mais inebriantes e autênticas experiências literárias, um modo de apenas espreitar o fundo de um poço, servir-se do calafrio sem levar a coisa até ao fim, sem investigar o possível sinistro. Mapas de tesouros por saquear, mundos entresonhados, deixados numa doce agonia, com algum gesto a ser descarnado pela correnteza. “A maior parte dos romancistas, suponho eu, carregam nas suas cabeças ou nos seus cadernos de apontamentos a ideia inicial de histórias que acabaram por nunca ser escritas. Às vezes, uma pessoa lembra-se delas muitos anos depois e pensa, com pena, que poderiam ter sido boas num tempo que já morreu”.
Num romancista tão bem sucedido, é curioso que seja num desabafo sobre um livro que ficou por escrever que nos dá uma das mais tocantes reflexões sobre a preciosidade da fé, e isto ao pôr-se a imaginar o fim da civilização cristã, resumindo a trama desse romance que seria passado num futuro em que o mundo teria sucumbido a um regime ditatorial e ateu, e que se aplicaria no extermínio dos crentes, permitindo que, no fim, sobrevivesse um só. O pequeno Papa, eleito trinta anos antes, por um conclave secreto, “condenado a governar uma Igreja que praticamente deixou de existir”. E acrescenta que “recebe até uma pequena pensão do Estado porque tem a sua utilidade, para mostrar até que ponto a Igreja está morta, e porque há sempre a possibilidade de que algum sobrevivente se traia ao tentar entrar em contacto com ele”. Assim, nesse último estertor reduzido a um velho pelos setenta, “errando, miserável, por aqui e por ali, movido pela vaga esperança de um sinal que lhe mostrasse que a fé afinal sobreviveu”, encontramos uma imagem esplendorosa de um autor que usa a fé para se torturar e confessar. E se o desfecho, que não revelamos aqui, é um assombro, não menos poderosa é a noção de que talvez só se possa salvar a fé deixando-a à beira da extinção, de modo a que nos livremos por uns tempos destes tão relutantes fiéis, ou desses outros, tão odiosos. Uns servindo-se da crença como uma espécie de ademane do espírito, ajeitando o cabelo ao passar em frente ao espelho que nos espia a alma, os outros servindo-se dela como pretexto para perseguirem a diferença, para darem cabo dos modos que tem o mundo de escarnecer de quem coça a sua fraqueza tirando à vida a sua graça.