Um professor e um louco. A dupla peculiar por detrás do mais famoso dicionário do mundo

Um professor e um louco. A dupla peculiar por detrás do mais famoso dicionário do mundo


A história por detrás da empreitada do Oxford English Dictionary já chegou ao cinema. Mel Gibson é James Murray, professor responsável pela edição, e Sean Penn um médico encarcerado por ter cometido um crime, que entre a genialidade e a loucura foi o principal contribuidor do projeto.


O cartaz do filme diz que esta é “uma incrível história verídica que definiu o mundo”, e se por mundo entendermos o dicionário da língua inglesa mais completo e minucioso alguma vez compilado, então a frase não peca pelo exagero. O Professor e o Louco, drama biográfico realizado pelo iraniano Farhad Safinia, é, portanto, o relato da génese do Oxford English Dictionary, o mais famoso dicionário do mundo, que começou a ser desenhado com mais fulgor na segunda metade do séc. xix. 

 O filme chegou ontem às salas de cinema portuguesas e é uma adaptação do romance de 1998 de Simon Winchester, que relata este processo que teve tanto de hercúleo como de atípico. Ora vejamos: já há 20 anos que Oxford tentava arranjar meios para avançar com a ideia megalómana de reunir e documentar todas as palavras da língua inglesa, desejo que tinha surgido no início do séc. xix num grupo de estudiosos que, curiosamente, não estava ligado ao campus. Saltemos já para dentro de muros quando os herdeiros da ideia, encurralados, resolvem chamar o “pouco convencional” Mr. James Murray – no filme, interpretado por Mel Gibson – para liderar o processo de registar e catalogar não só as palavras de língua inglesa como todas as variações ocorridas nas mesmas nos últimos cinco séculos.

A aposta da nata da academia no escocês Murray deu frutos, já que o professor, perante a certeza de que seria preciso mais de um século para levar a tarefa a bom porto, teve a ideia de abrir a feitura do dicionário à sociedade, lançando assim um repto: pediu às pessoas que procurassem nos livros certas palavras e as enviassem depois, pelo correio, para Oxford. A população respondeu ao chamado, mas entre as contribuidores houve um que se destacou a léguas: William Chester (W. C.) Minor, interpretado por Sean Penn, que enviou milhares de contribuições para o dicionário. Durante o processo de recolha, professor e voluntário vão trocando correspondência, numa altura em que Murray desconhecia os antecedentes do seu melhor ajudante.

O comité de Oxford decide homenagear a dedicação de Minor ao dicionário, mas é então que se deparam com um problema: W. C. Minor é o recluso n.o 742 de um hospital psiquiátrico e foi dentro desse isolamento forçado que, recorrendo à sua biblioteca, se dedicou exaustivamente ao trabalho de documentação.

Médico, criminoso, paciente Quem foi, afinal, este homem e que crime o atirou perpetuamente para trás das grades? Médico formado em Yale, W. C. Minor era um veterano da Guerra de Secessão Americana, nascido em família de classe alta. 

Muda-se para Londres em 1871, numa altura em que já tinha recebido tratamento psiquiátrico, e é acusado de cometer um “crime chocante, seguido de uma condenação considerada como exemplar para os padrões da época e acompanhada de um diagnóstico de insanidade mental do perpetrador do crime, encerrando-o mesmo num hospital psiquiátrico durante o resto dos seus dias”, resume Cláudia Sousa Dias, contribuidora da revista Caliban. Os seus comportamentos obsessivos a resvalar para a violência indicam que, efetivamente, Minor padeceria de um tipo de esquizofrenia que piorou após ter participado na guerra. Na instituição, Minor acaba por explicar a Murray que só mantendo a mente ocupada, rodeada de livros, é que consegue afastar os fantasmas que o atormentam, o que explicará o seu empenho férreo quando descobre o pedido de contribuição de Oxford pensado por Murray, que será um dos primeiros editores de um dicionário que, nos dias de hoje, continua em processo de mutação, sendo todos os anos adicionadas novas entradas – há um departamento responsável por receber as sugestões dos leitores que, por ano, analisa mais de 200 mil propostas.

A trama não só acaba por explorar o processo moroso, minucioso e preciso necessário para montar o Oxford English Dictionary como navega pelos meandros da loucura e pela forma como a doença psiquiátrica era encarada naquele século.

O dicionário acabou por ser publicado em 1884 – os trabalhos tinham-se iniciado em 1857 – e não foi recebido de forma consensual: foi arrasado, por exemplo, pela crítica do jornal francês Le Figaro.

Um caminho de espinhos É a primeira vez que Mel Gibson e Sean Penn dividem o protagonismo, num filme que conta ainda com Natalie Dormer (a Margaery de Guerra dos Tronos). A história do próprio filme não foi das mais felizes e a rodagem não foi, definitivamente, das mais fáceis. Os direitos sobre o livro foram comprados pela Mel Gibson’s Icon Productions logo no ano do lançamento, no final dos anos 90, mas até se atingirem as condições para iniciar a rodagem passaram largos anos. Gibson não desistiu de levar a história ao grande ecrã durante todos estes anos, mas agora recusou participar nas ações de promoção do filme como forma de protesto por, em 2016, já perto do final da rodagem, a Voltage Pictures ter cortado a filmagem de cenas extra nos exteriores de Oxford, pensadas para conferir mais autenticidade à trama. O ator não gostou da decisão dos estúdios, com quem está em litígio desde então, e a data de estreia foi sendo sucessivamente adiada de há dois anos para cá.

Para complicar, Farhad Safinia viu, devido às suas origens, o seu nome ser substituído em alguns mercados pelo pseudónimo PB Sherman.

Um parto difícil no grande ecrã que, no final de contas, até casa bem com as dificuldades encontradas durante o processo de composição do dicionário. Resta saber se a realidade vai imitar a ficção e provocar, cá e lá, dolorosas críticas.