O silêncio teima em ficar, apesar de a maioria dos operários da Graça já ter partido. Ana Alves é uma das guardiãs dos outros tempos. Basta um barulho e vem logo à janela do número 15 da Rua Rosalina: “Aqui é gente de trabalho, o senhor gostava que fizessem isso consigo?!” Na Vila Estrella D’Ouro a maioria das casas já foi tomada por estrangeiros que nem fazem ideia de quem foi Agapito Serra Fernandes, o galego que em 1908 construiu aquele complexo para os seus empregados. As ruas com nomes das filhas e da mulher, Rosalina, tal como o respeito pelos outros ficaram mesmo depois de Agapito ter regressado à terra natal. E as casas, essas, começaram com o tempo a ser arrendadas a várias pessoas, com a condição de que estivessem empregados e tivessem uma família com até dois filhos.
Naquelas ruas as raparigas casaram-se com os vizinhos, até porque nenhum rapaz de outras ruas podia lá entrar. “Era tudo controlado”, conta Ana, agora com 81 anos, lembrando a família que se criou, a bondade do senhor Agapito, que ainda conheceu, e a carroça do lixo de cavalo que por ali todos os dias passava. Hoje, da porta quebrada por uma janela não vê nada disso: “Apenas o egoísmo, a vaidade e a mentira. Há quem fique aqui uma ou duas noites e se puder passar sem falar passa”.
Do bairro onde apenas podia festejar o Santo António quem era “da casa” já vê poucas caras familiares: Lucília é uma delas, está cega e Ana toma conta dela; Odete passa grande parte dos seus dias à janela a ver quem passa.
Àqueles com quem cresceu não nega nada, esta filha de um polícia da Mouraria (um dos que passou no crivo apertado de Agapito para arrendar casa) e de uma costureira (que na noite de todas as incertezas de 1974 tremeu quando lhe pontapearam a porta dentro daquela vila particular a ordenar com violência que apagasse a lamparina): “Nasci aqui, onde durmo, onde fiz o meu filho, acha que não tenho um coração aberto para eles todos?!”, pergunta antes de fechar a janela para preparar o almoço do neto.
Na Graça são várias as vilas operárias, marcos de história e de histórias de patrões e de empregados. De famílias que se criaram e se desfizeram. De uma cidade que já não existe. Tal como a Estrella D’Ouro, a Vila Berta também mantém a presença daqueles que a fundaram, a família Tojal, que detinha uma empresa de construção civil mesmo atrás da vila.
“O meu bisavô, Joaquim Tojal comprou a quinta e construiu a casa branca, que é a casa da quinta, e a quinta era um estaleiro de construção civil. A parte de baixo da Vila Berta são armazéns e escritórios que pertencem à família e que tratamos por quinta. Em 1908 com o boom que Lisboa teve, com a Revolução Industrial, começou a haver falta de habitação, nomeadamente habitação operária e foi quando surgiram as vilas operárias”, contou ontem ao i Estêvão Tojal, frisando que na altura “ou o Governo ou a câmara” lançou um programa de investimento com juros bonificados: “Ele [o bisavô] com capitais próprios e aproveitando isso começou a construir a vila, pelos números pares, os edifícios mais modestos”. Tudo foi feito com caráter imobiliário, para rendimento próprio, explica, afirmando que as casas acabaram por ser ocupadas por muitos trabalhadores da empresa Tojal Construções.
A vila que ganhou o nome da única filha (de cinco) de Joaquim Tojal, bisavô de Estêvão, ficou durante mais uns anos integralmente na família, até que os herdeiros começaram a desfazer-se dos imóveis: “Hoje cerca de 60% ainda pertence aos herdeiros, o resto está espalhado por outros proprietários”.
A família gaba-se hoje de ter sido possível nos últimos anos com recurso a fundos públicos, patrocínios e receitas com os arraiais de Santo António – arrecadados através da comissão de festas – ter recuperado todas as fachadas, inclusivamente os azulejos e os ferros dos terraços.
Para Estêvão Tojal as pressões imobiliárias sobre inquilinos ainda não chegaram à Vila Berta, ainda que já existam algumas casas de pessoas que morreram em alojamento local: “Pressões? De maneira nenhuma, quem compra é para ir para lá viver. Aqueles esquemas que vemos na televisão, categoricamente não”.
“Há pessoas a serem escandalosamente pressionadas para sair” O certo é que a saída da família Tojal para o Brasil em 1976 após, o 25 de Abril, foi o início do fim da vila como todos a conheciam. “Foi tudo dividido por herdeiros e alguns imóveis vendidos a particulares. O meu prédio só foi vendido há três anos a uma turista”, conta ao i Teresa Santos, com 74 anos, cinquenta deles na vila. “Aqui já vamos sentindo alguma pressão [imobiliária]. A família Tojal vendeu o meu prédio e a senhora que comprou quer pôr-nos noutro alojamento para fazer obras”, diz, explicando que as dificuldades para os moradores da Vila Berta não são de agora.
“Quando a família Tojal foi para o Brasil, os empregados ficaram aqui todos encalacrados. Eu sou cunhada de um operário, o Adão Matos, que era tesoureiro deles. Aqui, a seguir ao 25 de Abril, ficámos todos por nossa conta, pagávamos renda num escritório que havia ali na vivenda [onde vivia e vive a família Tojal]”, afirma, lembrando que três ou quatro anos depois os proprietários voltaram do Brasil, ainda que a empresa nunca mais tenha aberto as portas.
Hoje, Fátima paga 35 euros de renda – na altura pagava cerca de 20 escudos – e não se imagina a viver noutro sítio, apesar de nem sempre ser fácil aguentar a nova vida da vila: “O meu marido está sem uma perna e acamado e há pouco dias quando o Benfica jogou contra uns alemães estavam hospedados no meu prédio uns estrangeiros, que penso que eram alemães, e chegaram às 6h, vinham bêbados e começaram a bater com pedras na porta. Tive de vir às escadas, mas também tenho receio, não é?! Isso incomoda um bocado”.
Também as festas de Santo António organizadas pela comissão de festas, a cargo de descendentes da família Tojal, são momentos de pouco descanso, com música alta até às 4h. Ainda assim, somando tudo o que se passa na vila, Fátima nem hesita: “Não tenho muitas queixas”.
Alice Conde, de 73 anos, admite que não está em maus lençóis porque o seu marido – filho de um motorista da empresa da família Tojal que já lá nasceu – comprou a casa: “Isto é um inferno com o alojamento local. Mais de 50% das casas têm novos proprietários”, diz, denunciando que “há pessoas à volta a serem escandalosamente pressionadas para sair”.
São muitas as mulheres que se mudaram para a Vila Berta por influência dos maridos. Áurea Sifuentes, 85 anos, é um desses casos: “Custou-me a adaptação, não posso mentir, mas quem lhe tirava a Vila Berta, tirava-lhe tudo”. “Casei com o neto de uns operários, ele já morreu e eu fiquei”. Esta história de cinco décadas de Vila Berta não anda muito longe da de Isilda Martins, de 74 anos, que acena com a cabeça enquanto ouve a vizinha contar a sua história: “Eu vim há 46 anos, o meu marido era da GNR e já cá vivia”.
E como apesar de serem um mundo à parte, as vilas não estão desligadas do mundo, o balanço é positivo para esta moradora: “A vida está melhor agora, era mais escrava antes. A vida era mais difícil, os salários mais baixos, mas com a juventude levou-se tudo. Sinto que isto era mais familiar antigamente”.
“Olhar para trás e pensar ‘Onde eles estão?’ custa” De frente para o Miradouro da Graça, a Villa Sousa está de portas fechadas há já vários meses, desde que os moradores conseguiram recuperar a fechadura, e assim travar o barulho e as incursões dos turistas e dos curiosos. O letreiro pendurado no rendilhado do portão não engana: é uma propriedade privada.
E assim que se entra há logo quem dê conta, há janelas que se abrem, olhos atentos e rostos pouco abertos a quem vem de fora.
“Isto é propriedade privada, tem autorização para estar aqui no pátio?”. A conversa com o morador mais velho, que não se quis identificar começou assim. Conta que quando foi fundada a vila, em 1890, a família Sousa tinha uma empresa de cavalos a funcionar ali.
“Para já continuamos a ter mais portugueses, aqui não há alojamentos locais porque continua a ser tudo do mesmo senhorio, da família Sousa, e ele não concorda com isso”, conta o morador, acrescentando que “o melhor é mesmo a vila continuar vedada”. Para quebrar o sossego, diz, já basta os moradores que teimam em entrar com as suas motas e os carros: “Eu não deixo o meu aqui, além de que é inseguro – em caso de incêndio só há uma saída e uma entrada”.
Apesar de aparentar ter mais de sessenta anos, garante não ter já ligações aos antigos operários que serviam a família Sousa, mas ainda recorda com alguma saudade aqueles tempos: “Quando era novo também parti uns vidros aqui, jogava hóquei, jogava à bola. E nãos nos fechávamos aqui no pátio, andávamos lá fora à vontade, não havia trânsito”.
Hoje sempre que as recordações lhe vêm à cabeça, lembra-se que lhe falta alguma coisa: “Olhar para trás e pensar ‘Onde eles estão?’ custa”. E um deles é o seu irmão que perdeu quando este, numa brincadeira, se pendurou numa carrinha mesmo à porta da vila.
A Villa Berta nada mais é do que um pátio quadrado ladeado por vários edifícios e um candeeiro ao centro. Mas não o de Vasco Santana do filme Pátio das Cantigas. “Diz-se que o filme foi gravado aqui, mas não foi, foi gravados nos estúdios da Tobis”.
“Quando não havia turistas com quem é que se governavam?” Ontem, enquanto o i esteve no pátio os olhos de Assunção Redondo não desviaram nem um milímetro. Tem 71 anos e há 44 que vive num dos rés-do-chão do número 3: “Antes conhecíamo-nos todos uns aos outros, hoje os mais novos nem um bom dia”. Mas as queixas sobre os que moram há menos tempo naquela vila operária não se ficam por aqui: “Trazem todos gatos ou cães, ninguém traz bebés. E não limpam a porcaria muitas vezes, o que deixa um cheiro aqui…”.
No total, pelas suas contas, hoje são cerca de 10 os moradores de outros tempos, daqueles em que a Vila Berta ainda era uma família, em que as pessoas discutiam nas janelas e que as crianças atravessavam a correr os portões. Dos tempos em que quem ali morava ou trabalhava na estiva ou na polícia.
“A senhoria não quer aqui alojamento local. Isto aqui na Graça e em Alfama foi horrível e ela é contra. Acho bem, quando não havia turistas com quem é que se governavam?!”, rematou.