Viagem ao primeiro 1.º de Maio da democracia

Viagem ao primeiro 1.º de Maio da democracia


Durante os 48 anos de ditadura, o Dia do Trabalhador foi substituído pelo Dia do Trabalho. Em 1974, na euforia do 25 de Abril, uma multidão saiu à rua. “Isto é uma pintura surrealista subitamente transformada em realidade”, citou a imprensa espanhola. Soares e Cunhal apareceram lado a lado na manif de Lisboa. Não tornaria…


“Subitamente iluminado pelo sol de que o afastaram há meio século, o povo português emergiu das sombras com um ímpeto, uma sofreguidão avassaladora que só os menos avisados estranharam. Assim, as ruas de Lisboa e do Porto foram o espetáculo avassalador do parto da voz nacional”. As palavras na primeira página do Diário de Lisboa de 2 de maio de 1974 ganham forma nas imagens da multidão que encheu as ruas para celebrar o primeiro Dia do Trabalhador depois de 48 anos de ditadura.

Em Lisboa, a marcha começou junto à Alameda D. Afonso Henriques e culminou no “ex-estádio FNAT”, registam as notícias da época. Era quarta-feira, como é hoje. Cinco dias depois do 25 de Abril, quebrava-se também ali a narrativa do regime. Deixava de ser o estádio da Fundação Para a Alegria no Trabalho, criada por Salazar [e que daria lugar ao INATEL] para ser simplesmente 1.o de Maio.

A dimensão que ganharam as primeiras concentrações livres em Lisboa e no Porto tornaram-se parte da história da democracia. Em Lisboa, estima-se que tenham saído à rua um milhão de pessoas. “Os sorrisos, as flores, os dedos em V foram o alfabeto de uma nova linguagem para a fraternidade – aqui”, continua o Diário de Lisboa. No Porto, “centenas de milhares de pessoas” encheram como não havia memória a Praça da Liberdade e a Avenida dos Aliados.

O povo unido jamais será vencido O slogan internacional, atribuído à campanha do chileno Salvador Allende, dominou o desfile, mas não faltaram outras palavras de ordem, como o apelo ao fim da guerra colonial e a que fosse feita justiça. O facto de Américo Tomás e Marcello Caetano terem sido enviados para a Madeira logo a 26 de abril era uma das críticas. O Diário de Lisboa lembra algumas letras de improviso ditas na manifestação, que começou pelas 16h na capital e se prolongou até ao cair do dia. “Ó Rosa arredonda a saia/ Ó Rosa arredonda-a bem/ Que o Marcelo e mais a PIDE/ já não matam mais ninguém”.

Eram 17h30 quando começaram os discursos na tribuna, onde se juntaram Mário Soares e Álvaro Cunhal, num registo que não tornaria a repetir-se nas comemorações do 1.o de Maio. Mário Soares fora o primeiro político a regressar do exílio, a 28 de abril. Cunhal chegara de véspera. Antes do “comício”, a palavra foi dada aos sindicatos. O primeiro a discursar foi Manuel Lopes, representante do Sindicato dos Lanifícios. Seguiu-se o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos. “Que raio de Governo era aquele que só se preocupava com a organização da polícia e do futebol? Que raio de Governo era aquele que tratava os trabalhadores como bois, de quem só se espera a força de trabalho?”, interpelou.

Dos movimentos políticos, o primeiro a discursar foi Francisco Pereira de Moura, em nome do Movimento Democrático Português. Seguiu-se Nuno Teotónio Pereira. As intervenções de Soares e Cunhal eram as mais esperadas. “Foi hoje, foi aqui que nós destruímos o fascismo”, disse Soares, pedindo o julgamento dos homens do regime em tribunais comuns, o corte das relações com o Chile de Pinochet e falando na necessidade de acabar com a guerra colonial.

“Não nos anima o espírito de vingança, mas deve assegurar-se que os fascistas não voltem ao poder, o que exige que a máxima vigilância seja mantida pelas massas populares, em colaboração com as Forças Armadas”, apelaria Álvaro Cunhal.

O primeiro 1.o de Maio em democracia teve eco também lá fora. A revista espanhola Triunfo faz a capa da edição de 11 de maio com a mancha humana nas ruas de Lisboa. A abrir o artigo, uma frase do escritor Alexandre Cabral. “Isto é uma pintura surrealista subitamente transformada em realidade. Lisboa, antes bonita e triste, é agora bonita e alegre. Antes, em cada esquina havia desconfiança, agora há um abraço”. A Time, que dedica a edição de 6 de maio ao “golpe em Portugal”, com uma imagem icónica de Spínola na capa, analisa os acontecimentos no país e relata a mudança da noite para o dia. Homens a discutir política nos cafés, estudantes a marchar pelos Restauradores com faixas a pedir o direito dos trabalhadores à greve – seria reposto em agosto de 1974, já no ii Governo Provisório, liderado por Vasco Gonçalves. “Diz um deles: ‘A nossa longa, longa noite acabou. [Comenta] um taxista maravilhado: “Quem imaginaria que seria possível em Portugal?”