As comemorações do 25 de Abril dão sempre ensejo a documentários, reportagens, entrevistas, concertos e eventos que nos transportam para momentos que nos envolvem e revolvem: fazem-nos pensar naqueles que connosco viveram esses dias, também em nós nesses dias e, principalmente, em nós nos dias de hoje.
Ouvimo-los então, ouvimo-nos.
Ouvimos pessoas para quem o tempo parece não ter passado ou que se esforçam para que nos convençamos disso: que o seu tempo não passou e que elas, como eram, não passaram.
E, ao ouvi-las, olhamos para dentro, para saber se também nós participamos nesse engano.
Saem-lhes da boca palavras que já não querem dizer o mesmo, que não querem dizer o que então diziam.
Perguntamo-nos, por isso, se quem as usou sabia o que tais palavras queriam, de facto, dizer, ou se, pelo contrário, apenas inventavam para si um cenário em que elas pareciam soar bem e parecidas com o que realmente diziam.
Perguntamo-nos se saberiam deveras o sabor duro e ácido que tinham e que, de facto, tiveram sempre para quem as viveu.
Perguntamo-nos então se, usando e abusando de tais palavras, nos queriam apenas iludir, se queriam apenas iludir-se.
Perguntamos mais: o que querem ainda hoje dizer quando usam tais palavras, que sabem que há muito perderam – a não ser para quem as viveu – o significado que tinham?
Repetem-nas em tom baixo, sério – quase seráfico – para que confiemos naquilo que dizem, ou, pelo contrário, num tom exaltado de quem, verdadeiramente, precisa de as gritar para se convencer – e nos convencer – de que nelas acredita.
As palavras, porém, mudaram de sentido – mudaram mesmo, pelo menos para alguns – e com elas, com as mesmas palavras, inventaram-se novas causas que apenas escondem aquelas outras mais cruas em que quisemos um dia acreditar.
Causas que, objetivamente, não quisemos mesmo viver, porque vivê-las era duro e duro era deixar de ser quem éramos.
Os palcos em que tais e tão importantes palavras se dizem são também outros e, por isso, o tom com que se dizem permitem-lhes significar coisas diferentes, embora dê coerência a quem as disse repeti-las agora.
As palavras têm esse sortilégio: podem ser usadas de muitos modos, até para nos representarmos em papéis que nunca quisemos – ou já não queremos –, de facto, representar.
Usando-as como se fossem as mesmas, podemos continuar a destacar-nos dos outros, que dificilmente julgámos iguais.
Porque nós, sim, nós somos retos e abnegados: nós acreditamos no que acreditamos e eles, coitados – imitando-nos, embora todos os dias –, não.
Fizemos isto e aquilo porque acreditámos; não como qualquer outro.
E, felizmente, o entrevistador – embasbacado – não nos perguntou porque o sabíamos melhor do que ninguém e diferentemente dos outros.
Nem nós, afortunadamente, nos fizemos essa pergunta.
Por isso pudemos continuar a representar o papel – já outro – que escolhêramos para nos salvar da realidade fria e feia de que queríamos – dizíamos então que queríamos – salvar os outros.
Inventámos outros heróis, é certo: ídolos tão ou mais falsos do que os primeiros. Mais pequeninos, porque também nós vamos, com a idade, definhando e temos de nos ir agarrando àqueles que, pelo seu tamanho real ou ficcionado, se deixam virtualmente agarrar por nós.
É que já não conseguimos segurar algo mais grandioso e verídico para nos valorizarmos, para valorizar as palavras que dissemos antes, isto é: para continuar a existir, enfim.
E assim continuamos a olha-nos uns aos outros com a mesma complacência e a importância que um dia nos atribuímos e que negámos aos demais, mesmo àqueles com quem acamaradámos todos os dias.
E lá vamos, batendo nas costas de uns e de outros e, sobretudo, nas nossas, enquanto na rua se ouve o carro de som de um sindicato antigo que exorta à luta os jovens precários, mal pagos e desempregados.