Como diria Otto Lara de Resende, Spínola era uma figura, uma figura! Aquele jeito de marechal prussiano, monóculo à Eça de Queiroz e um tom de voz que devia provocar danos irreversíveis às cordas vocais, bimbalhadas como os carrilhões de Mafra. Teve dificuldade em ser consensual e, provavelmente, tal até o incomodava.
No dia 30 de abril de 1975, a imagem de António Sebastião Ribeiro de Spínola estava definitivamente abalada. O presidente da Junta de Salvação Nacional, 14.o da República Portuguesa, germanófilo convicto, que acompanhou in loco, em 1941, as movimentações da Wehrmacht no início do cerco de Leninegrado, gastara os trunfos da sua popularidade no dia 28 de setembro do ano anterior, no enorme fracasso que foi a sua falhada invenção da “maioria silenciosa” e, sobretudo, na tentativa de golpe de Estado de 11 de março, uma deriva de direita que, convenhamos, lhe estava na massa do sangue e o fez fugir primeiro para Espanha e, em seguida, para o Brasil.
Tornou-se, de um dia para o outro, o bombo da festa daqueles que se sentiam, para o bem e para o mal, ideólogos do 25 de Abril, como era o caso de Vasco Lourenço. Numa entrevista compilada em livro – MFA, Rosto do Povo – que surgiu no Diário de Lisboa em retalhos, não poupou o general do monóculo a uma das maiores invetivas da sua existência. E foi até às raízes do relacionamento entre ambos na guerra na Guiné: “As nossas relações foram das piores possíveis. Por tudo. Por questões operacionais, por feitio pessoal, e porque nunca aceitei bem a autocracia dos meus superiores. Pegámo-nos e a sério. Quando terminei a minha comissão recusei-me mesmo a aceitar o seu convite para jantar no Palácio do Governo, a residência dele em Bissau”.
E sublinhava: “Devo informar que só os interesses do Movimento das Forças Armadas e os superiores interesses do país me levaram a entabular, de novo, relações com o ex-general Spínola”.
Simpatias nazis Este ex-general era, no mínimo, uma expressão assassina após o que sucedera a 11 de março. Por coincidência ou conveniência, houve parte da imprensa, que desenterrou fotografias de Spínola numa das suas excursões a Leninegrado. É visível o seu perfil, de bivaque negro e capote alentejano, ele que era natural de Estremoz, a cidade do tremoço, no distrito de Évora, misturado com os seus colegas do exército nazi. Em 1975, os nazis não eram especialmente bem-vistos, e ainda não são, valha-nos Deus, se é que ele existe. Spínola era esmagado por quem tinha a hipótese de pisá-lo. Foi também por essa altura que começou a usar monóculo, o que lhe dava um ar de enigmática aristocracia castrense, mas valeu-lhe igualmente uma das suas alcunhas mais viperinas: o Caco.
Vasco Lourenço não o poupava de forma alguma: “A influência de Spínola na minha tomada de consciência política foi absolutamente nula. Não posso negar que, em termos militares, lhe reconheço muitos méritos. Mas, também, enormes defeitos. Penso que o ex-general pretendeu ser um novo De Gaulle, pessoa que ele admira muito. Porém, e devido à influência de muitas pessoas a ele ligadas, falhou por completo e limitou-se a ser um novo Naguib”.
Naguib, Muhammad, claro, o general egípcio que foi mandado encarcerar por Nasser depois de ter sido o estratega da Revolução de 1952 e primeiro Presidente da República egípcia. As semelhanças entre as figuras pairavam, inevitáveis, sobre o que acabara de acontecer em Portugal.
Heróis dA Paris-Match Spínola tornou–se fascinante para a imprensa internacional. E um chamariz. Jornalistas internacionais, enviados especiais ao país que fizera uma revolução em que o vermelho do sangue dera lugar ao vermelho dos cravos, enxameavam em seu redor. Consta que isto também terá ferido o orgulho dos verdadeiros ideólogos do 25 de Abril. Vendo bem, António Sebastião fora atirado para a frente dos revoltosos pela simples razão de que, sendo eles na sua maioria oficiais de baixa patente – também chamaram ao 25 de Abril a Revolução dos Capitães –, havia que delegar determinadas funções em alguém do topo hierárquico.
Spínola era a figura perfeita de um militar à moda antiga a dirigir um país parado no tempo pelos caminhos da modernidade. Patrick Chauvel, o grande fotógrafo da Paris-Match, não tardou a desembarcar em Lisboa para registar para a posteridade o general do monóculo. Veio diretamente do Camboja, onde fora atingindo num ombro por estilhaços de uma bazuca. Um dia escreveu: “Não é o Pierre Renoir de La Bandera, nem o Von Stroheim de La Grande Illusion. O general Spínola faz verdadeiramente a guerra. Na Guiné. Imagem soberba e irrisória: um pequeno país que possuía, há quatrocentos anos, um império imenso, sobre o qual o sol nunca se escondia, esgota-se hoje no último combate colonial do século”.
Isto foi antes de 1975, obviamente. Foi ainda no tempo em que Spínola tentava organizar o caos em que se transformara a guerra na Guiné e percebera, como depois registou no seu livro Portugal e o Futuro, que ela já não estava mais no campo militar, mas no da diplomacia.
Chauvel, mais uma vez: “Atirados para um território muito quente, com uma vegetação muito densa, vigiados pelo inferno das emboscadas, os camponeses de Beja, os pescadores da Nazaré ou os estudantes de Coimbra cuidam da sua elegância, a exemplo do seu comandante-em-chefe: ‘Mais vale ir para o céu com um uniforme como deve ser’”.
No turbilhão político em que se transformou a sua existência, António de Spínola cultivou até ao fim a sua imagem impecável. Havia nele uma alma de dândi indestrutível, fossem quais fossem as condições em que se encontrava. Em abril de 1975 ruíra como estratega político e viu-se obrigado a sair do país. Terá alimentado até ao fim da sua vida, em agosto de 1996, a ambição de regressar ao poder.
Como diria Otto Lara de Resende, Spínula era uma figura, uma figura! Aquele jeito de marechal prussiano, monóculo à Eça de Queiroz e um tom de voz que devia provocar danos irreversíveis às cordais vocais, bimbalhadas como os carrilhões de Mafra. Teve dificuldade em ser consensual e, provavelmente, tal até o incomodava.
No dia 30 de Abril de 1975, a imagem de António Sebastião Ribeiro de Spínola estava definitivamente abalada. O presidente da Junta de Salvação Nacional, 14º da República Portuguesa, germanófilo convicto, que acompanhou “in loco”, em 1941, as movimentações da Werhmacht no início do cerco de Leningrado, gastara os trunfos da sua popularidade no dia 28 de Setembro do ano anterior no enorme fracasso que foi a sua falhada invenção da Maioria Silenciosa e, sobretudo, na tentativa de golpe de Estado de 11 de Março, uma deriva de direita que, convenhamos, lhe estava na massa do sangue, e o fez fugir primeiro para Espanha e em seguida para o Brasil.
Tornou-se, de um dia para o outro, o bombo da festa daqueles que sentiam, para o bem e para o mal, ideólogos do 25 de Abril, como era o caso de Vasco Lourenço. Numa entrevista compilada em livro – MFA, Rosto do Povo – que surgiu no Diário de Lisboa em retalhos, não poupou o general do monóculo a uma das maiores invectivas da sua existência. E foi até às raízes do relacionamentos entre ambos na guerra da Guiné: “As nossas relações foram das piores possíveis. Por tudo. Por questões operacionais, por feitio pessoal, e porque nunca aceitei bem a autocracia dos meus superiores. Pegámo-nos e a sério. Quando terminei a minha comissão recusei-me mesmo a aceitar o seu convite para jantar no Palácio do Governo, a residência dele em Bissau”.
E sublinhava: “Devo informar que só os interesses do Movimento das Forças Armadas e os superiores interesses do país me levaram a entabular, de novo, relações com o ex-general Spínola”.
Simpatias nazis. Este ex-general era, no mínimo, uma expressão assassina após o que sucedera a 11 de Março. Por coincidência ou conveniência, houve parte da imprensa que desenterrou fotografias de Spínola numa das suas excursões a Leningrado. É visível o seu perfil, de bivaque negro e capote alentejano, ele que era natural de Estremoz, a cidade do tremoço, no Distrito de Évora, misturado com os seus colegas do exército nazi. Em 1975, os nazis não eram especialmente bem vistos, e ainda não são, valha-nos Deus, se é que ele existe. Spínola era esmagado por quem tinha a hipótese de pisá-lo. Foi também por essa altura que começou a usar monóculo, o que lhe dava um ar de enigmática aristocracia castrense, mas valeu-lhe, igualmente, uma das suas alcunhas mais viperinas: o Caco.
Vasco Lourenço não o poupava de forma alguma: “A influência de Spínola na minha tomada de consciência política foi absolutamente nula. Não posso negar que, em termos militares, lhe reconheço muitos méritos. Mas, também, enormes defeitos. Penso que o ex-general pretendeu ser um novo De Gaulle, pessoa que ele admira nuito. Porém, e devido à influência de muitas pessoas a ele ligadas, falhou por completo e limitou-se a ser um novo Naguib”.
Naguib, Muhammad, claro, o general egípcio que foi mandado encarcerar por Nasser depois de ter sido o estratega da Revolução de 1952 e primeiro presidente da República egípcia. As semelhanças entre as figuras pairavam, inevitáveis, sobre o que acabara de acontecer em Portugal.
Heróis do Paris-Match. Spínola tornou-se fascinante para a imprensa internacional. E um chamariz. Jornalistas internacionais, enviados-especiais ao país que fizera uma Revolução em que o vermelho do sangue dera lugar ao vermelho dos cardos, exameavam em seu redor. Consta-se que isto também terá ferido o orgulho dos verdadeiros ideólogos do 25 de Abril. Vendo bem, António Sebastião fora atirado para a frente dos revoltosos pela simples razão de que, sendo eles na sua maioria, oficiais de baixa patente – também chamaram ao 25 de Abril a Revolução dos Capitães -, havia que delegar determinadas funções a alguém do topo hierárquico.
Spínola era a figura perfeita de um militar à moda antiga a dirigir um país parado no tempo pelos caminhos da modernidade. Patrick Chauvel, o grande fotógrafo do Paris-Match, não tardou a desembarcar em Lisboa para registar para a posteridade o general do monóculo. Veio directamente do Cambodja onde fora atingindo num ombro por estilhaços de uma bazuca. Um dia, escreveu: “Não é o Pierre Renoir de La Bandera, nem o Von Stroheim de La Grande Illusion. O general Spínola faz verdadeiramente a guerra. Na Guiné. Imagem soberba e irrisória: um pequeno país que possuía, há quatrocentos anos, um império imenso, sobre o qual o sol nunca se escondia, esgota-se hoje no último combate colonial do século”.
Isto foi antes de 1975, obviamente, Foi ainda no tempo em que Spínola tentava organizar o caos em que se transformara a guerra na Guiné e percebera, como depois registou no seu livro, Portugal e o Futuro, que ela já não estava mais no campo militar mas no da diplomacia.
Chauvel, mais uma vez: “Atirados para um território muito quente, com uma vegetação muito densa, vigiados pelo inferno das emboscadas, os camponeses de Beja, os pescadores da Nazaré ou os estudantes de Coimbra cuidam da sua elegância, a exemplo do seu comandante-em-chefe: ‘Mais vale ir para o céu com um uniforme como deve ser’”.
No turbilhão político em que se transformou a sua existência, António de Spínola cultivou até ao fim a sua imagem impecável. Havia nele uma alma de dândi indestrutível, fosseem quais fossem as condições em que se encontrava. Em Abril de 1975, ruíra como estratega políticos e viu-se obrigado a sair do país. Terá alimentado até ao fim da sua vida, em Agosto de 1996, a ambição de regressar ao poder.