A maturidade democrática de 45 anos de idade pode não ser suficiente para diferenciar o normal diálogo entre quem pensa de forma diferente sobre o modo de organizar a sociedade portuguesa com uma intrincada expressão de um acentuado poliamor político da liderança do Partido Socialista. É certo que o período é eleitoral, que as circunstâncias aconselham que, para a manutenção do poder, se possam gerir os diversos cenários políticos de parcerias pós-legislativas, tudo a bem do fim maior da manutenção do poder, mas não perceber que a deriva gera desconfiança eleitoral é não perceber o essencial.
Há uma degradação da confiança no projeto do governo, originada pelas contradições, pelos casos e por sucessivos ziguezagues e opções políticas sem pingo de senso. Basta percorrer o país, além dos holofotes, para compreender o desgaste da sucessão de episódios de nomeações de familiares, das frentes de combate abertas pelas expetativas geradas de reconquista de direitos e por decisões políticas de quem parece não ter noção de que o país é mais do que Lisboa e Porto. A dicotomia gerada nos passes, nos serviços mínimos aquando da greve dos motoristas de transportes perigosos e até no plano de criação de mais oferta de residências universitárias são apenas alguns exemplos que contrariam a narrativa vigente da valorização do interior. O Plano Nacional de Alojamento Estudantil é um impulso positivo, mas por que razões se realizam duas iniciativas de apresentação de reconversões de espaços em Lisboa com a presença do primeiro-ministro? O mesmo que não visita, pelo segundo ano consecutivo, o maior evento de exposição do mundo rural do interior do país, a Ovibeja.
Há um crescente nervosismo popular, misto de desconfiança e desilusão perante as expetativas geradas, que leva à desmobilização que está a pontuar a campanha eleitoral para o Parlamento Europeu. O risco da desvalorização dos desgastes e dos sinais que aí estão é o de não haver a tradicional dinâmica de registo de um voto descomprometido nas europeias e um resgate desses votos para um patamar superior de responsabilidade e de sentido de utilidade na formação de maiorias nas legislativas. Um risco acentuado pela evidência de que, na campanha eleitoral das legislativas, o PS estará sob fogo cruzado. De um lado, o “fogo amigo” dos parceiros da solução governativa, em crescente estado de negação perante as vicissitudes do caminho percorrido em conjunto; do outro, o “fogo inimigo” da direita, em esforço de capitalização dos desgastes do poder e de memória curta em relação à última passagem pela governação.
Sem experiência no segmento, é de supor que os dois grandes desafios de um poliamor serão certamente a gestão da convivência em comum sem que nenhuma das partes entre em roturas ou a manutenção de razoável estado de ignorância das partes em relação à existência de outras. Ora, no poliamor político, tudo é mais difícil, sobretudo quando uma das partes quer dar nota pública antecipada da excecionalidade da relação em relação às suas questões positivas. O recente caso das modulações de posição do Partido Socialista em relação à lei de bases da saúde, primeiro com BE e PCP e, agora, com o PSD, é mais uma expressão desse poliamor político dos últimos quatro anos. União de facto para as coisas boas, separação para as consequências negativas das opções políticas dos Orçamentos do Estado. A relação resiste até ao momento em que Mário Centeno exercita o virar de página da austeridade em alguma cativação, difere ou recusa despesa ou modela a narrativa do curso da governação e das disponibilidades em função da órbita dos interlocutores, nacionais ou internacionais. A relação polialicerçada resistirá sempre que estiver em causa a sobrevivência política dos protagonistas ou a recalcada ambição de ascensão a patamares superiores do poder, mas a falta de linearidade e de coerência, como os excessos, pode-se pagar cara.
Mesmo a aparente bonomia presidencial evidencia sinais claros de desgaste na relação com as pessoas e os territórios. Há menos genuinidade, intensidade e interação nas presenças do Presidente da República no terreno. Em Beja, na abertura da Ovibeja, Marcelo Rebelo de Sousa tinha a recebê-lo menos presidentes de câmara, apenas o deputado do PS Pedro do Carmo e muito menos dirigentes regionais da administração pública e das instituições regionais. É uma realidade que revela um desgaste pelo excesso de exposição e proximidade – pode ter-se banalizado. E também neste órgão de soberania, o exercício de poliamor político é cada vez mais difícil, entre uma esquerda que, no essencial, tolera os impulsos presidenciais e uma direita que queria maior intervenção em relação à governação.
O problema maior do poliamor político da governação é que sempre enunciou a fidelidade a determinados parceiros de governação, numa verve que encantou alguns setores do Partido Socialista, entretidos em diabolizações daqueles que agora pretendem trazer para o interior da relação de poder, tudo para que os cargos persistam e o poder perdure. Os fins para atingir os meios, sempre essa deriva.
NOTAS FINAIS
Olha para o que eu digo. Carlos Moedas é o comissário europeu português com maior participação partidária da história da nossa construção europeia. Ainda agora é mandatário da candidatura do PSD, depois de uma constante participação em iniciativas políticas e partidárias em Portugal. É só ridículo o incómodo de Paulo Rangel em relação a um vídeo de uma comissária europeia em apoio da candidatura do PS.
Olha para o que fazem. A propósito do 45.o aniversário do 25 de Abril, a RTP apresentou diversos programas de verdadeiro serviço público e de divulgação de novos dados sobre os primeiros tempos da afirmação democrática. Depois dos arquivos online, mais um bom impulso, como é positivo o padrão médio das séries noturnas da RTP2.