O aviso aparece no canto do ecrã do computador de João Sousa, médico de família na Unidade de Saúde Familiar da Baixa. “O doente tem registo de alergias”. O médico tenta prescrever amoxicilina e é informado de que o doente tem historial de alergia a antibióticos beta-lactâmicos, como é o caso. Por norma, a pergunta é sempre feita ao doente, explica João Sousa, mas pode não ter esta especificidade, e o doente pode até não se recordar de alguma vez ter tido uma reação alérgica. Neste caso, o registo da reação cutânea foi feito em 2016 num hospital e surge na consulta no centro de saúde. O sistema podia evoluir, admite João Sousa, por exemplo para avisar sobre interações entre medicamentos ou alergias a componentes dos medicamentos, mas por agora é já uma ferramenta importante, diz o médico. “Ajuda a evitar lapsos. Até podemos ter o registo ou perguntar, mas pode simplesmente acontecer, num dia mau, esquecermo-nos”.
O mecanismo parece simples, mas resulta de sete anos de aperfeiçoamento do CPARA – Catálogo Português de Alergias e Outras Reações Adversas. A ferramenta foi desenvolvida pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), o organismo que tem tido em mãos a informatização do sistema de saúde português. Até 2012, não havia um registo standardizado das alergias em Portugal, o que tornava impossível a partilha de informação entre instituições, quanto mais criar este tipo de avisos automáticos.
Henrique Martins, presidente dos SPMS, explica que não só não havia uma cultura de partilhar esta informação como não havia estatísticas, panorama que começou a mudar. Os dados estão disponíveis para quem queira fazer investigação nesta área e um dos primeiros trabalhos revelou, por exemplo, a dimensão da anafilaxia na população portuguesa, um trabalho que juntou especialistas de diferentes hospitais e do Centro de Investigação em Tecnologias e Sistemas de Informação em Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Só nos primeiros dez meses de utilização do CPARA, de julho de 2012 a maio de 2013, foram registados 1209 casos de anafilaxia, a reação alérgica mais grave e que pode ser fatal. Nos adultos, revelou um artigo publicado em 2014, foi maioritariamente provocada por medicamentos, com os antibióticos beta-lactâmicos à cabeça. Nas crianças, o mais comum é a reação ser desencadeada por alimentos.
Uniformizar os registos O CPARA está dividido em três grupos: alergias a medicamentos – onde estão incluídas todas as substâncias que podem ser prescritas pelos médicos –, alimentos (uma lista que inclui cerca de seis de dezenas de alergénios) e outros, onde se incluem ácaros e pólenes.
Dados extraídos para o i revelam que em 2018 estavam registadas em ambiente hospitalar 93 759 alergias. No caso dos medicamentos dominam os antibióticos. Foram, por exemplo, documentados 2513 casos de alergias a penicilinas de espetro alargado. No campo das alergias não medicamentosas, a mais comum é a alergia aos ácaros, com 1200 casos documentados no ano passado. Segue-se a alergia ao pólen, com 729 casos.
A estes dados falta acrescentar a informação coligida nos centros de saúde. Henrique Martins acredita que os registos disponíveis no CPARA, que são incluídos no resumo clínico do doente, que centraliza a informação de diferentes instituições, ainda não refletem todas as alergias da população portuguesa, mas já terão uma boa representatividade. Neste período contactaram com o sistema de saúde milhões de portugueses e, embora não seja obrigatório, uma norma da Direção-Geral da Saúde de 2012 recomenda o registo desta informação por todos os profissionais de saúde do SNS.
Além dos alertas na prescrição eletrónica, Henrique Martins sublinha o papel que a informação pode ter no reforço da confiança de doentes e profissionais. Atualmente, os portugueses já podem registar as suas alergias no Portal do Utente e, através da aplicação MySNS Carteira, podem apresentar a informação através de um cartão virtual específico, que já foi descarregado por 110 mil pessoas. A partir de junho, o responsável adianta que esta informação será incluída num cartão internacional que passará a estar disponível sempre que utentes do SNS precisem de cuidados de saúde no estrangeiro, num projeto pioneiro de partilha de informação em cuidados transfronteiriços. O salto é grande. “Desde que Hipócrates começou a medicina que a informação era escrita à mão. Cá também sempre foi assim, até 2005, quando se informatizaram os cuidados de saúde primários. Mas no caso das alergias mantinha-se o texto. Quando começámos a fazer este trabalho extraímos os dados e no excel havia 50 entradas diferentes para a alergia a penicilina: alérgico a penicilina, a pinicilina, às penicilinas, como se diz no Porto.”
A ideia dos catálogos, que além das alergias estão a ser desenvolvidos para campos como nutrição e oncologia, é criar uma “interoperabilidade semântica”, diz Henrique Martins, em que os registos são feitos de forma uniforme e a interpretação é clara para todos os profissionais. No caso das alergias, além dos alergénios estão tipificadas as diferentes reações – das erupções na pele à anafilaxia – e ainda a severidade, seguindo a terminologia internacional, para que possa ser usada sem entraves lá fora.
Para já, é na prescrição eletrónica de medicamentos que se tem mostrado mais útil. Diariamente, o retângulo a avisar que o doente tem alergia ao medicamento que ia ser receitado aparece 59 vezes nos computadores de médicos espalhados pelo país. Foram cerca de 1760 avisos por mês em janeiro, fevereiro e março. “Antes, ou o doente tinha dito ou o médico tinha perguntado; desta forma, aumentamos a segurança. E posso estar a prescrever em Faro e a alergia ter sido documentada pelo médico de família em Famalicão”.